Autores: Bruno de Oliveira Moura, Fábio Guedes de Paula Machado,Matheus Almeida Caetano 1. Introdução Desde a epistemologia funcionalista, trata-se sempre da solução de um problema concreto através da seleção, entre equivalentes funcionais, daquele que desempenha mais satisfatoriamente uma dada função. Assim, o artigo pretende explicar as bases gerais da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e algumas de suas contribuições para o Direito, já que definir a função deste e de sua dogmática pressuporia a prévia delimitação de um problema a ser tematizado e equacionado como complexidade. 2. Do pensamento sistemático ao pensamento sistêmico O conceito de sistema não é unívoco, entendido pelo senso comum como um conjunto de elementos relacionados entre si em uma ordem unitária e coerente, onde o todo é mais do que a mera soma das partes. Este é o conceito do paradigma aristotélico de sistema enquanto mecanismo de conhecimento, presente em toda evolução do pensamento ocidental até os dias de hoje. O movimento de positivação do Direito em códigos legais fez com que a idéia de sistematização ingressasse no campo das discussões jurídicas, tanto no campo legislativo, quanto no campo dogmático: os códigos são tidos como um todo sistematizado de disposições legais sobre determinadas matérias e a ciência jurídica passa a ser compreendida como uma ordenação de conhecimentos ou conceitos acerca de certa disciplina jurídica. O pensamento sistemático no campo jurídico encontra sua máxima formulação com CANARIS. Ordenação (expressão de um estado de coisas intrínseco e racionalmente apreendido, ou seja, fundado na realidade) e unidade (fator de conexão e recondução do material apreendido a certos princípios fundamentais, capazes de evitar a dispersão de singularidades desconexas), mantidas em uma relação de intercâmbio recíproco, aparecem como os elementos constitutivos do sistema de direito positivo e do sistema dogmático, voltados ambos à realização do valor fundamental da segurança jurídica. De todas as formas, a dogmática jurídica é definida como um sistema de ordenação conceitual voltada à interpretação das disposições legais, de modo a garantir uma aplicação racional, previsível, segura e harmônica do Direito positivo ao caso concreto. Esta abordagem sistemática pretende produzir algumas vantagens como: (i) facilitar o exame do caso concreto; (ii) proporcionar uma aplicação ao mesmo tempo uniforme (para os mesmos casos) e diferenciada (para supostos diferentes) do Direito; (iii) simplificação e maior manuseabilidade do Direito pelo operador; (iv) oferecer um guia de elaboração e evolução do Direito positivo. Em meados do século passado, Karl Ludwig von BERTALANFFY constituiu uma verdadeira mudança de paradigma no seio da teoria dos sistemas. Pretendendo elaborar um conceito de sistema aplicável a todo campo de investigação científica, o biólogo austríaco inovou: o sistema continua sendo mais do que a mera soma das partes, mas a perspectiva da relação parte/todo é substituída pela perspectiva da diferença entre sistema/entorno: o sistema é um conjunto de elementos que se relacionam entre eles mesmos e com um ambiente. Desta feita, agrega-se ao paradigma tradicional aristotélico (diferenciação sistêmica “para o interior”) a distinção entre sistema e ambiente (diferenciação sistêmica “para o exterior”), concebendo aquele como um sistema aberto em constante intercâmbio — de energia, matéria ou informações (neguentropia) — com o entorno. O que define o sistema, segundo BERTALANFFY, é a coesão das interações dos elementos que o integram, estabelecendo o limite entre ele e ambiente. A distinção entre sistema e ambiente e a fundamentação da distinção entre sistemas abertos e fechados, são o legado fundamental deixado por tal formulação. Neste momento nasce a chamada teoria geral dos sistemas (TGP), ou, na terminologia aqui empregada, o pensamento sistêmico. Enquanto o pensamento sistemático compreende o sistema como uma ordenação unitária interna de elementos, o pensamento sistêmico concebe o sistema como a mesma ordenação unitária em um contexto de relacionamento externo com um meio. Isso não quer dizer que o pensamento sistêmico substituiu o sistemático, ou que este se transformou naquele. O pensamento sistêmico nada mais foi do que uma bifurcação da noção de sistema: as duas formas de compreensão do mundo convivem como concepções autônomas e não contraditórias. As insuficiências da concepção de BERTALANFFY fizeram com que a teoria geral dos sistemas recebesse as contribuições oferecidas pelo desenvolvimento da cibernética, enquanto ciência que trabalha com os mecanismos de controle (retro-alimentação) e de transmissão de informação (comunicação) no âmbito sistêmico. Todo sistema (seja uma máquina, seja um ser vivo) é capaz de auto-regulação, de modo que sua estabilidade e orientação dependem de mecanismos internos de controle. A noção reitora, neste campo, é a retro-alimentação (feedback) — trata-se de uma estratégia de equacionamento do problema da entropia — entendida como a capacidade do sistema em se ajustar a uma conduta futura tendo em vista a memória formada em razão de fatos passados. Isso significa que o sistema capta informações do entorno (por meio de dispositivos perceptivos e sensoriais) e pode modificar — segundo o processamento da informação externa por estruturas internas — seu arranjo para obter uma melhor adaptação ao meio. Neste primeiro momento da cibernética (primeira cibernética) estamos diante de um sistema aberto que trabalha unicamente com o modelo de relação input/output (entrada ou imissões/saída ou emissões) entre sistema e entorno, denominado de “modelo de black box”, assentado na observação externa do sistema. Neste modelo, as informações do entorno recebidas pelo sistema como serviço ou prestação (input) são processadas internamente e depois despejadas no ambiente (output). Esta informação despejada volta posteriormente a ingressar no sistema, configurando uma retro-alimentação ou “efeito de retorno (feedback), de modo que aquele já conhece a informação e se adapta mais facilmente para processá-la, alternado para tanto sua estrutura. Com isso se obtém a homeostasis do sistema (constância dos elementos do sistema e evitação de desvios de orientação). As falhas desta formulação levaram ao surgimento da denominada “cibernética de segunda ordem” ou “segunda cibernética” (MARUYAMA), onde a relação entre sistema e entorno se dá mediante a seletividade do sistema em relação ao processamento das informações do entorno. É o próprio sistema que decide processar ou não a informação externa, através de estruturas especializadas. Segundo a “lei da variedade necessária (formulada por ASHBY) a relação entre sistema e entorno é uma relação entre distintas complexidades, em que a complexidade do sistema, como requisito constitutivo, é sempre menor do que a complexidade do ambiente: a complexidade do ambiente não pode ser abarcada pelo sistema, até porque caso contrário as complexidades seriam idênticas e com isso inexistiria sistema e entorno, mas somente entorno. A idéia de seletividade significa que o sistema seleciona apenas alguns estados do entorno (input seletivo), para os quais dispõe de estrutura para processar (para engatar um output), de modo que os demais estados são indiferentes para a operação do sistema. A noção de seleção torna-se, portanto, reitora da moderna teoria dos sistemas. Esta segunda cibernética (a tese da distinção entre sistema e entorno como diferença entre complexidades e a idéia de seletividade enquanto combinação entre clausura e abertura do sistema) fornece a LUHMANN o ponto de partida fundamental de sua construção metodológica, denominada de “uma teoria geral dos sistemas de segunda geração: Second Order Cybernetics, ou Teoria dos sistemas que Observam (Observing Systems)”. Trata-se da teoria dos sistemas autorreferentes e autopoiéticos, a qual será analisada abaixo. 3. A teoria dos sistemas autopoiéticos O grande giro sistêmico realizado por LUHMANN insere na discussão as contribuições da teoria da autoposiesis dos sistemas vivos— formulada pelos biólogos chilenos MATURANA e VARELA —, chegando-se a uma inovadora versão da teoria geral dos sistemas, segundo a qual é o próprio sistema que, simultaneamente fechado e aberto, produz seus elementos e estruturas (o chamado giro autopoiético). No campo estritamente jurídico (especialmente nas relações entre Direito, política e democracia), esta formulação tem sido desenvolvida por autores como DE GIORGI e TEUBNER (este último também no campo do Direito Civil) . 3.1 Fundamentos Antes de tudo é necessário indicar, muito brevemente, os quatro pilares metodológicos sobre os quais LUHMANN constrói seu pesado e intrincado aparato conceitual. O primeiro deles é sua pretensão de universalidade, resultando numa verdadeira teoria geral do conhecimento que excede os limites da sociologia (alcançando, por exemplo, a política, a religião, a economia, o direito, etc.). Por isso tais conceitos são marcados pelo alto grau de abstração, o que não deve ser visto como algo nocivo, senão como condição de obtenção de uma concepção efetivamente homogênea. Isso fica evidente na mudança de perspectiva na relação entre sujeito e objeto, representada na idéia de observação de segunda ordem. Não é possível conhecer a realidade (os sistemas) apenas o observando: o decisivo é observar como os próprios sistemas observam a si mesmos e aos demais sistemas enquanto partes de seu entorno (teoria dos sistemas que se observam). Em segundo lugar, a concepção de Luhmann parte de pressupostos multidisciplinares, envolvendo contribuições da física, da matemática, da cibernética, da neurociência, da biologia. Todos estes ingredientes são adicionados à teoria geral dos sistemas de primeira ordem e culmina no surgimento de uma concepção sistêmica totalmente peculiar: “uma nova geração da teoria dos sistemas” . O terceiro pressuposto é a metodologia funcionalista adotada. Trata-se de uma versão funcionalista distinta do funcionalismo clássico (funcionalismo estrutural elaborado por PARSONS no campo das ciências sociais, onde se privilegiava a estrutura em face da função (onde o decisivo era manter a estrutura do sistema a qualquer custo, estando as funções subordinadas ao desempenho desta tarefa). LUHMANN propõe um estruturalismo funcionalista, onde deve ser radicalmente privilegiado o conceito dinâmico de função em face da noção de estrutura. A partir deste ponto de partida epistemológico, o objeto é encarado sempre como um problema real a ser resolvido pelo sistema. Parte-se da premissa que os sistemas possuem certas necessidades ou exigências de cuja satisfação depende sua própria subsistência. Cada elemento do sistema está voltado à satisfação destas necessidades, desempenhando uma determinada função idônea para sua manutenção. Nesta esteira, como se trata da busca por soluções que sejam eficientes, a ontologia clássica é substituída pelo construtivismo (enquanto uma ontologia da diferença, uma ontologia referida ao observador: uma ontologia da relação entre sistema e entorno, relação esta sempre contingente): o decisivo é indicar e escolher, dentre equivalentes funcionais, aqueles mecanismos com maior idoneidade (funcionalidade) para resolver o problema da existência sistêmica. Desta forma, o funcionalismo não pretende saber a razão pela qual as coisas são de tal ou qual modo, mas indaga sobre o objeto de estudo em termos de busca de outras possibilidades funcionais (quais outras possibilidades poderiam cumprir uma determinada função? Quais outros elementos são equivalentes do ponto de vista funcional para processar a complexidade do ambiente?). Nestes termos, o relevante não é a existência do elemento em si e suas características, mas sim a função por ele desempenhada. O método funcional se torna, desta forma, um esquema de comparação entre alternativas de solução. O último pressuposto diz respeito à utilidade dos paradoxos. Diferentemente da tradição do pensamento ocidental que considera o paradoxo como algo negativo, LUHMANN considera o paradoxo como algo positivo, construtivo que não leva a uma real contradição e à tautologia, mas à unidade conceitual, quando desparadoxizado pelo competente código binário. Cada sistema possui seu paradoxo específico (o do sistema econômico, por exemplo, é o paradoxo da escassez: cada acesso a bens escassos, que pretende diminuir sua escassez, a aumenta; o do sistema jurídico reside na positividade do Direito: este é válido apenas porque poderia ser diferente do que é). Mas dois deles possuem natureza geral, pertencentes a todos os sistemas. O primeiro é o paradoxo geral da unidade da diferença (unitas multiplex) entre sistema e ambiente: estes obtêm as respectivas unidades a partir da diferença marcada pelos seus limites. O segundo é o paradoxo do fechamento e abertura do sistema: o sistema só pode ser fechado porque é aberto. 3.2 Conceitos gerais Como visto, desde uma perspectiva funcional, o decisivo é a resolução de um problema. Este, para a teoria dos sistemas luhmanniana, nada mais é do que a complexidade do mundo (enquanto objeto de investigação). Por complexidade, deve-se entender o conjunto de possibilidades de eventos, ou seja, a totalidade dos eventos possíveis. O complexo define-se pela falta de correspondência entre os elementos do mundo: com o aumento quantitativo destes, o número das relações possíveis entre os mesmos aumenta em proporção geométrica, de modo que não mais é possível que todo elemento fique vinculado a outro (impossibilidade de correspondência biunívoca entre os elementos). Assim, a complexidade é o conjunto daqueles acontecimentos que podem ou não ocorrer: para o observador tais fatos não são necessários, mas apenas possíveis. Há sempre mais possibilidade no mundo do que se pode realizar. O mundo é complexo porque tudo pode acontecer. A complexidade está diretamente ligada ao conceito de contingência: como todos os acontecimentos do mundo não são eventos necessários, mas somente possibilidades de realização, toda a realidade existente no mundo poderia ser diferente do que é. Para o observador a possibilidade do real pode ser enganosa, confirmando-se ao final como algo inexistente e inatingível. Aquilo que se transforma em realidade pode ser diferente da possibilidade esperada pelo sujeito. Neste contexto de complexidade e contingência, resulta impossível conhecer o mundo em todas as suas possibilidades de realização. A complexidade inerente ao mundo deve ser reconhecida e reduzida. É preciso, então, realizar um corte da realidade para apreendê-la. O complexo implica na coação à seletividade (que também é inerente ao mundo), obrigando o observador a eleger (seleção) uma entre as inúmeras alternativas de experiência existentes no amplo leque de possibilidades de acontecimento. O sistema é justamente o instrumento que reduz a complexidade do mundo a ponto dela poder ser suscetível de ser absorvida pelo observador. Para LUHMANN, o sistema é aquilo que se diferencia de um entorno ou ambiente (unidade da diferença). O ambiente ou entorno nada mais é do que um complexo confuso e dinâmico de relações delimitado por horizontes abertos, cujos limites podem, em todo caso, ser alterados. O sistema constitui-se através da criação de uma fronteira que o distingue do ambiente: dentro da fronteira (boundary) só há sistema, e fora dela só há entorno. Enquanto redução de uma parcela da complexidade do mundo, cada sistema tem seu próprio entorno. E o entorno de um sistema pode conter, por sua vez, outros sistemas, permanecendo estes como entorno para o sistema analisado. A diferença constitutiva do sistema é definida como um desnível de complexidade (diferença de complexidades): o entorno é sempre mais complexo que o sistema. O sistema é composto por elementos (que é a unidade indecomponível) e pela relação (estrutura). A complexidade sistêmica (“complexidade interna”) consiste justamente no aumento de elementos e/ou de suas relações entre si. Dita complexidade não está dada ontologicamente, senão que é aquela definida como suficiente pelo próprio sistema, e, portanto, é contingente. O elemento é definido de modo não ontológico, mas funcional. A característica fundamental do sistema é sua auto-referência: o sistema é objeto de sua própria análise, e define a si mesmo a partir do reconhecimento de sua diferença em face do entorno. Além desta primeira operação, existem outras operações auto-referentes que o sistema realiza depois de formado. A primeira delas é a observação, pela qual o sistema, com base em um esquema (programa) de diferenças (código binário — que através dos seus valores positivo/negativo, desparadoxiza o sistema através do reconhecimento dos ruídos como diferença, excluindo terceiros valores e consagrando a unidade como diferença) por ele mesmo definido, observa a si mesmo (auto-observação) e o seu entorno (hetero-observação), sem que isso impeça que o sistema seja também objeto de observação de outros sistemas (hetero-referência). É a partir da observação que o sistema pode, através de sua seletividade (recorte da complexidade em razão da escolha de certas possibilidades em detrimento de outras), reduzir a complexidade do entorno. A noção de auto-referência é o que permite que o sistema seja ao mesmo tempo fechado e aberto. Este paradoxo é informado pela operação auto-referencial mais importante: a autopoiesis do sistema (auto-produção), pela qual o próprio sistema produz sua estrutura e seus elementos (auto-organização) e determina seu estado seguinte a partir da limitação anterior obtida com a operação. Em suma: o sistema se constitui e se mantém através de suas operações peculiares e exclusivas, com base na auto-observação mediada pelo código binário. É a autonomia ou independência do sistema o campo de suas operações. Este fechamento operativo é condição de abertura cognitiva — acoplamento estrutural (interdependência) — do sistema, dado que, para que as perturbações do entorno não o destruam ou o desestabilizem, aquele precisa estar suficientemente seguro e equilibrado mediante suas operações sistêmicas. Eis outro paradoxo sistêmico: a abertura através do fechamento. O sistema é aberto cognitivamente para ser estimulado através de ruídos ou perturbações oriundas do ambiente. Com isso, obtém a energia necessária para alimentar suas operações internas. Não é aberto no sentido da teoria tradicional, já que a relação entre as provocações do entorno e as respostas do sistema não é causal e linear (a cada perturbação uma resposta do sistema); também não é aberto nos termos do modelo cibernético de input/output (a cada perturbação registrada na memória do sistema uma resposta). Mais bem, trata-se de uma abertura seletiva, enquanto relação de imputação derivada da auto-referencialidade: depois de observar o entorno e suas demandas, bem como a si mesmo e sua capacidade estrutural para redução da complexidade, o sistema seleciona aqueles ruídos (perturbações ou irritações) que serão recebidos e considerados como informação (aqueles dados que são reconhecidos pelo sistema como distinções segundo o código de programação binário) apta a gerar novas estruturas capazes de reduzir a complexidade externa. Quando mais o sistema reduz a complexidade externa, mais aumenta a complexidade interna: diminuir a complexidade é aumentá-la. De tal modo que a complexidade sistêmica pode chegar a um nível tal que exija a diferenciação, dentro do sistema, de elementos e estruturas com funções de reduzir certas parcelas específicas de complexidade. Com isso o sistema dá origem a subsistemas que passam a pertencer ao entorno do sistema de origem (sistema global). Esta diferenciação/especialização sistêmica, consistente da aplicação interna da diferença sistema/entorno — reentrada (re-entry) —, é o meio pelo qual se dá a evolução dos sistemas. Os diversos sistemas não se comunicam entre si (os demais sistemas constituem, na verdade, entorno para o sistema analisado, e um sistema autopoiético não mantém comunicação com o entorno). Mas isso não significa que eles não mantêm relações entre si. O acoplamento estrutural é justamente o modo pelo qual se dá a relação entre sistema e entorno (e também relações inter-sistêmicas, dado que os outros sistemas constituem ambiente para o primeiro): trata-se da operação pela qual um primeiro sistema coloca à disposição de um segundo sistema sua própria estrutura para que este possa continuar construindo sua específica complexidade. Um modo específico de acoplamento estrutural é a interpenetração, existente quando o acoplamento ocorre entre sistemas que evoluem conjunta e reciprocamente: o sistema jurídico e sistema econômico, por exemplo, interpenetram-se na regulação da moeda de curso legal e dos contratos. Segundo LUHMANN, existem três classes de sistemas auto-referenciais e autopoiéticos, cada um com sua respectiva operação redutora da complexidade: (i) Os sistemas vivos ou biológicos (células, cérebro e organismos), (ii) os sistemas psíquicos ou de consciência (representações, processamento da atenção) e (iii) os sistemas sociais (interações, organizações e sociedades). Enquanto os sistemas sociais e psíquicos se constituem e se mantém pelo sentido, os sistemas vivos se constituem e se mantém através de processos vitais físico-químicos de ordem intracelular, orgânica, neurológica, etc. Por sua vez, os sistemas sociais (reproduzem sentido) e os sistemas psíquicos (experimentam ou percebem sentido) também se diferenciam pelas respectivas operações de base: enquanto nos sistemas psíquicos a operação constitutiva é o pensamento (consciência, enquanto constituição psicológica do indivíduo), nos sistemas sociais a operação é a comunicação, que é a única operação genuinamente social (ações de várias pessoas que se inter-relacionam por meio do sentido). Evidentemente, LUHMANN concentra sua análise nos sistemas sociais, pretendendo com isso construir uma teoria sociológica que seja suficientemente capaz de observar e propor mecanismos de redução da crescente complexidade da sociedade contemporânea. Os sistemas sociais não são constituídos por indivíduos, mas apenas por comunicações, enquanto suas unidades mínimas (“sociedade sem homens”). Aqueles estão no entorno do sistema social. A comunicação é o processo que procura transmitir informações (nem sempre consegue, diante da improbabilidade da comunicação). Trata-se do elemento de produção autopoiética do sistema social: somente a comunicação gera comunicação (desenvolvimento de mais comunicação a partir da comunicação). O processo de comunicação é integrado por três seleções distintas (ou três momentos de seleção): (i) a primeira delas é a informação, enquanto simples escolha entre um leque de possibilidades; (ii) a segunda é a notificação, como meio de expressão que participa a informação ao receptor; (iii) o ato de entender, que é o elemento decisivo, através do qual a comunicação se perfaz. Somente há comunicação quando o destinatário compreende (aceitando ou rechaçando) a informação contida na notificação e orienta sua conduta de acordo com este entendimento. Em suma: só há comunicação quando ocorrem estas três seleções. O fato de que somente a comunicação reproduz comunicação exclui os estados psicológicos e biológicos como elementos constitutivos e intrínsecos da operação comunicativa. A despeito de estar fora do sistema social, o indivíduo é elemento fundamental na comunicação, dado que os sistemas sociais necessitam da vida para existir: aquela somente ocorre se mediada pelo sistema psíquico. Tanto o sistema biológico quanto o psíquico devem estar presentes para que a comunicação possa emergir. É que somente a comunicação gera comunicação, mas não é capaz de percebê-la. A consciência é o único sistema com capacidade de perceber a comunicação, apesar de não gerá-la. Em suma: a consciência é imprescindível para a comunicação, de modo que o sistema social e o sistema psíquico estão estruturalmente acoplados (interpenetração). É desta forma que se dá a relação entre indivíduo e sociedade. A teoria sistêmica da sociedade possui diversos níveis de generalização[24]. Nesta trilha, são apontadas três classes de sistemas sociais (sistemas de comunicação). A interação (sistemas de interação) é o mais simples e precário deles, constituída quando os indivíduos presentes se percebem mutuamente. Aqui a comunicação se constitui única e exclusivamente em razão da mera presença de dois sujeitos em um mesmo lugar e em um mesmo momento. É o sistema típico do contato originário: quando alter seleciona algo através de sua conduta (por exemplo, um cumprimento), comunica algo ao ego, que por sua vez pode processar tal comunicação como ponto de partida para outras seleções (por exemplo, retribuir o cumprimento de alter). A interação, todavia, é um sistema funcional para reduzir apenas pequenas complexidades. De toda forma, em razão de sua escassa estabilidade, é insuficiente para satisfazer as necessidades sociais de orientação. A segunda classe de sistema social é a organização. Trata-se de um sistema mais estável do que a interação, capaz de garantir de forma mais intensa a permanência das estruturas de expectativas, dotadas aqui de maior confiabilidade. Aqui já não basta a mera presença para deflagrar o surgimento do sistema. Aquela é substituída pela filiação à organização. Ao se filiar, o sujeito consente em reprimir a espontaneidade de sua conduta e conduzi-la de acordo com certas pautas de comportamento que, reunidas na noção de papel, conferem estabilidade ao sistema. Por fim, o mais amplo e complexo sistema social é a sociedade, constituída por todas as comunicações existentes. Enquanto sistema mais abstrato, a sociedade possibilita a existência das demais classes de sistemas sociais situadas nos níveis inferiores de abstração (interações e organizações). E enquanto sistema global, a sociedade dá suporte, através das operações de diferenciação/especialização de funções, aos vários sistemas abstratos parciais (subsistemas): economia, política, direito, religião, educação, moral, ciência, etc. O aumento crescente da complexidade do entorno, e conseqüentemente, da própria complexidade reduzida do sistema social, faz com que este se diferencie em subsistemas sociais voltados ao desempenho de funções específicas, segundo um código binário operacional próprio e os respectivos meios de comunicação simbolicamente generalizados (definidos como os instrumentos indicativos da unidade da diferença de um dado para o sistema): o Direito (código lícito/ilícito), a economia (código lucro/prejuízo) a política (código progressista/conservador), a ciência (código verdadeiro/falso), da educação (ensino/não ensino), da moral (código bem/mal) cada um com função e operação autopoiética próprias. Esta especialização de funções contribui decisivamente para a redução da crescente complexidade social. E ao mesmo tempo aumenta a complexidade do sistema global, que contém agora mais sistemas com as respectivas parcelas de complexidade. 3.3. O Direito como estrutura do sistema social O problema básico dos sistemas é a complexidade do mundo. Isso fica mais evidente nos sistemas sociais e psíquicos: o mundo oferece aos homens uma infinidade de possíveis experiências e ações; ocorre que a limitada capacidade humana de percepção do mundo e da assimilação de informação faz com que sempre existam mais possibilidades do que se pode realizar. A complexidade obriga à seleção, e por isso, traz consigo a contingência: cada uma das possibilidades ou experiências ofertadas pelo mundo pode ser diferente do esperado, podem ou não se realizar. Esta contingência simples nada mais é do que o risco de desapontamento em face da possibilidade de um evento (complexidade e contingência no âmbito da experimentação e assimilação). Nos contatos sociais esta contingência é elevada a um segundo plano, o da dupla contingência. Alter não é capaz de esperar algo de Ego, razão pela qual não possui um modelo de orientação para sua conduta. Aquele só poderá orientar seu comportamento se tiver certa expectativa a respeito do comportamento do Ego (expectativa de comportamento). Este, por sua vez, também não pode orientar seu comportamento de acordo com um modelo, dado que para tanto deveria poder conhecer (esperar) o que Alter espera dele, ou seja, deveria ter uma expectativa sobre a expectativa do outro (expectativa de expectativa). Neste contexto, para LUHMANN, o Direito é a generalização/estabilização temporal, social e material de expectativas de comportamento, capaz de imunizá-las simbolicamente. Na dimensão temporal, a generalização consiste em dotar a expectativa de instrumentos pelos quais a mesma possa se estabilizar (como um serviço de reparo ou manutenção da estrutura) em caso de desapontamento. Ou seja, trata-se da estabilização da expectativa através do processamento de sua defraudação de modo que a mesma possa continuar prosperando enquanto modelo de orientação de condutas. As expectativas temporalmente estáveis são expectativas normativas, vale dizer, constituem verdadeiras normas. Estas são definidas como expectativas de conduta estabilizadas contrafaticamente, isto é, mantida para o futuro a despeito da ocorrência do fato desestabilizador (conduta desviada). A expectativa violada é mantida (não é abandonada) e a conduta desviada (discrepância) é atribuída ao autor enquanto algo irrelevante para sua vigência. Em suma: a generalização temporal da expectativa nada mais é do que sua normatização, de modo a fazer com que a vigência da mesma se mantenha de domingo a domingo, sem necessidade de renovação ou certificação, independente de quem espera ou não. Na dimensão social, a generalização consiste na institucionalização das expectativas. Institucionalizar é fazer com que a expectativa saia do modelo simples de interação social entre duas posições e obtenha uma ressonância geral capaz de constituí-la como pauta de comportamento comum válida para todos. A institucionalização apóia a expectativa no consenso esperado a partir de terceiros, ou seja, na concordância genérica ou consenso antecipado ou presumido acerca do conteúdo da expectativa (suposição fictícia de consenso). Em suma: a generalização social atribui à expectativa um consenso geral suposto, independentemente do fato de existir ou não a aprovação individual. Na dimensão material (prática), a generalização consiste em atribuir à expectativa um sentido objetivo e prático de imunização simbólica das demais possibilidades de comportamento. É que as expectativas não estão soltas no ar, dispostas de modo isolado, atomizado. Trata-se do agrupamento ou entrelaçamento de expectativas normativas e institucionais em um complexo de sentido informado por fundamentações e confirmações mútuas capaz de identificar os comportamentos convergentes e divergentes em termos de seu significado comunicativo para a vigência da expectativa. Em suma: esta modalidade de generalização tem a função de identificar as expectativas em um contexto fático. Na moderna sociedade de alta complexidade, aquela identificação de complexos práticos de sentido pode ocorrer através de dois instrumentos (princípios de identificação do complexo de expectativas): papéis sociais e os programas de decisões. A primazia constitutiva deste segundo princípio (já que é ele, e não os papéis que constituem a operação autopoiética do sistema) faz com que Direito seja definido como um complexo de programas decisórios. Mas como estes três mecanismos de generalização tendem a uma natural incongruência, a função do Direito é generalizar congruentemente as expectativas comportamentais. Garantir a congruência de uma expectativa significa alcançar a compatibilidade recíproca das diversas dimensões da generalização. Somente esta congruência é capaz de formar uma seleção mais estreita e idônea para figurar como estrutura do sistema social. Atendidos todos estes pressupostos, temos uma expectativa especificamente jurídica, garantida pela sanção enquanto meio institucionalizado de manutenção ou estabilização contrafática da norma jurídica. Em suma, o Direito é o fato social que garante aquele patamar mínimo e imprescindível de orientação de condutas, constituindo a base da ordem social. Direito e sociedade estão em relação de interdependência (acoplamento estrutural) recíproca: o Direito é uma estrutura do sistema social, ou seja, constitui parte da sociedade. Sua função essencial é reduzir uma parcela da complexidade desestruturada da sociedade e, ao mesmo tempo, fazer com que esta alcance uma complexidade mais alta e estruturada. Em suma: o Direito é “uma construção de alta complexidade estruturada”, satisfazendo a necessidade de ordenamento na sociedade. Sem o Direito, não há orientação de condutas no meio social. Enquanto sistema auto-referencial e autopoiético, o Direito desempenha sua função através de seu código binário privativo lícito/ilícito ou direito/não direito (Recht/Unrecht) responsável por sua des-paradoxização (o paradoxo estrutural do Direito é a produção simultânea de direito e não direito e sua positividade, pois o Direito somente é Direito porque seu conteúdo poderia ser diferente). Toda e qualquer comunicação jurídica (sempre interna ao sistema) orienta-se unicamente por este código. Através deste o Direito processa em seu interior expectativas normativas jurídicas capazes de manter a si mesmas em situações de conflito. O meio de comunicação simbolicamente generalizado é a norma jurídica, definida como expectativa estabilizada contrafaticamente como dever-ser através de uma sanção jurídica. Nesta trilha, o Direito é constituído através de programas decisórios jurídicos. Ou seja, constitui-se e opera mediante uma programação condicional (condicionamento das normas jurídicas): se forem preenchidas determinadas condições, deve-se adotar uma determinada decisão. Esta programação condicional é uma decisão jurídica porque é definida pelo próprio sistema como o elemento de sua constituição e reprodução. O direito se diferencia do sistema social através de uma decisão política, definindo que programação do sistema jurídico será estabelecida através de processos decisórios de natureza exclusivamente jurídica. Em suma: o Direito se cria e atua através de processos decisórios jurídicos. Nesta trilha, enquanto sistema autopoiético, é o Direito que produz o Direito, ou seja, as normas jurídicas são produzidas a partir de outras normas jurídicas. Só o Direito pode dizer o que é Direito e o que não o é. Isto implica na positivação do Direito, vale dizer, na fixação do Direito pela legislação e não segundo exigências do Direito Natural. A positividade — enquanto acoplamento estrutural entre Direito e Política - a legislação tem por base uma decisão política - ao atestar o caráter constituído do Direito, permite que o mesmo possa evoluir (flexibilidade que possibilita sua diferenciação) em conformidade com as exigências de redução de complexidade da sociedade e em obediência às normas jurídicas estabelecidas para sua alteração, por ele mesmo estabelecidas. Enquanto Direito Positivo, o próprio sistema estabelece as condições de sua própria validez, se legitimando como Direito. Como ocorre com todos os sistemas sociais, a legitimação da atuação do sistema jurídico é dada pelo próprio sistema (toda legitimação é auto-legitimação). Em suma: a legalidade é a única legitimidade. Eis o paradoxo da validade ou constituição do Direito: o Direito positivo tem validade porque ele poderia ser modificado através de uma decisão jurídica. A auto-legitimação do sistema jurídico (assim como o de qualquer outro sistema social) não é informada pela existência de valores a respeito do convencimento da vigência das normas, nem pela verdade ou justiça, nem pela existência de um consenso efetivo. O que legitima o Direito é a necessidade de decisão capaz de reestruturar as expectativas de comportamento. Isso faz com que a legitimação seja alcançada através da observância das regras estatuídas para operação funcional do próprio sistema (a verdade não é o fim, mas pode ser um meio de legitimação). Trata-se, assim, de uma legitimação pelo procedimento, ou seja, de uma legitimação através de processos decisórios jurídicos (procedimentos juridicamente organizados). O procedimento é um sistema social jurídico diferenciado, estruturado por normas jurídicas específicas. Estamos diante de um conceito funcional de legitimação: dado que sua função é assegurar que as decisões emitidas pelo sistema sejam obrigatórias para o comportamento dos envolvidos (sejam tomadas como premissa de comportamento, reduzindo, desta forma, a complexidade social), a legitimidade é definida como “uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”. Com isso se institucionaliza, através do consenso pressuposto, o reconhecimento generalizado e a aceitação da decisão como base de estruturação de expectativas. Em suma: a legitimação da decisão jurídica através do procedimento está voltada à (re) estruturação contínua das expectativas. Nesta esteira, são apontados três processos decisórios jurídicos de legitimação: (i) o processo legal de eleição política, consistente na formação do corpo de representantes do povo responsáveis pela manifestação de sua vontade, com a função de manter em aberto, segundo os princípios da universalidade e da igualdade, as alternativas políticas de diferenciação do Direito; (ii) o processo legislativo (procedimento parlamentar de legislação), constituído pelo debate público entre os representantes eleitos e definido como momento constitutivo da positividade do Direito, definindo as expectativas a serem consideradas como estruturas da sociedade; e (iii) o processo judiciário, definido como a realização concreta de decisão (aplicação do Direito) através da adoção de papéis processuais gerais das partes e do papel especial de juiz, voltada à reestruturação de expectativas colocadas em dúvida diante do juízo. Estes processos dão origem a decisões programantes que exigem a estruturação de decisões programadas pelo próprio sistema. Segundo LUHMANN, tais operações legitimantes devem estar de acordo com a Constituição, enquanto acoplamento do sistema jurídico com o sistema político. 4. Conclusões Desta forma o presente trabalho estabeleceu de forma resumida alguns dos pontos centrais da teoria dos sistemas autorreferentes de Niklas Luhmann, demonstrando seu amplo alcance teórico (universalidade) para além do Direito, assim como a distinção entre os pensamentos sistemático e sistêmico. O Direito como um das estruturas do sistema social diferencia-se das outras, através do seu código binário (direito/não direito), possuindo sua forma própria de operação, por isso só o Direito pode dizer o que é ou não Direito. |