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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Moral, Direito e Política: Sobre a Teoria do Discurso de Habermas

 Autor: Luiz Bernardo Leite Araujo

Teoria do Discurso e Pensamento Pós-metafísico

 Estou esgaravatando, um pouco aqui, um pouco acolá, à procura dos vestígios de uma razão que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade. Estas palavras de Jürgen Habermas, extraídas de uma entrevista concedida há cerca de dez anos atrás, assinalam uma perspectiva geral de pensamento que o autor trata de desenvolver em problemas particulares com os quais depara, seguindo assim um método de pesquisa que, sem perder a visão de conjunto própria do saber filosófico, resiste ao monismo unificador das teorias tradicionais. As contribuições de Habermas nos campos da moral, do direito e da política ilustram sobremaneira tal perspectiva, tanto na forma de apresentação quanto nos resultados da investigação, razão pela qual uma apresentação da teoria discursiva torna indispensável a mirada retrospectiva sobre alguns elementos fundamentais do pensamento habermasiano, elaborados ao longo de uma trajetória acadêmica já cinqüentenária, cujo eixo norteador reside no conceito de agir comunicativo. A Teoria do Discurso deve ser considerada, em primeiro lugar, através de uma guinada lingüística ou pragmático-formal que Habermas assume em seu projeto teórico, desde sua incipiente formulação no quadro conceitual  traçado com base na releitura das categorias hegelianas do trabalho e da interação até seu contorno definitivo nos temas incorporados na obra magna3 a partir de quatro teorias complementares: (i) a teoria do agir comunicativo, que tece um conceito constitutivo de ação social orientada à intercompreensão; (ii) a teoria da sociedade, que desenvolve um conceito de sociedade integrando a teoria dos sistemas com a teoria da ação, de modo a distinguir e conjugar a esfera sistêmica e a esfera do mundo vivido; (iii) a teoria da racionalidade, que elabora uma noção mais englobante de razão, com a conseqüente superação da perspectiva monológica da filosofia do sujeito; (iv) a teoria da modernidade, que propõe uma nova leitura da dialética da racionalização social, pela qual se possa discernir os fenômenos patológicos a fim de contribuir para um redirecionamento, em vez de um mero abandono, do projeto da modernidade. No amplo e sinuoso percurso de constituição da teoria discursiva, a noção de agir comunicativo representa seu ponto de unidade e seu fio de continuidade, pois é ela que permite a Habermas elaborar um conceito formal de racionalidade apropriado ao horizonte da modernidade e fundamentar uma concepção de sociedade baseada no conceito de razão mencionado acima pelo autor.

Além desse giro lingüístico, três outros motivos que caracterizam o que Habermas chama de pensamento pós-metafísico emigram para sua própria teoria: a racionalidade procedimental, o modo de situar a razão e a deflação do extraordinário no seio da filosofia4. De fato, Habermas concebe a teoria do agir comunicativo baseada numa racionalidade de procedimentos, prolongando a linha do novo tipo de racionalidade metódica que se impõe desde o final do século XVII e início do século XVIII, que significa, no campo do saber teórico, o falibilismo da ciência, e no campo do saber prático, o formalismo da moral e do direito. .Passa a valer como racional., afirma o autor, .não mais a ordem das coisas encontrada no próprio mundo ou concebida pelo sujeito, nem aquela surgida do processo de formação do espírito, mas somente a solução de problemas que aparecem no momento em que se manipula a realidade de modo metodicamente correto. A racionalidade do procedimento não está mais em condições de garantir uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos.5. Assim, Habermas pretende colocar a filosofia numa divisão de trabalho junto às outras ciências, isto é, na posição de participante num processo de cooperação. Além disso, na esteira de uma crítica ao saber absoluto da metafísica, a teoria habermasiana busca destranscendentalizar a razão, a fim de trazê-la ao chão do mundo vivido e às condições concretas e contingentes da prática, sem perder, entretanto, o horizonte das idealizações inevitáveis e necessárias que se abre em cada ato de fala, realizado argumentativamente. Finalmente, será crucial a explosão do clássico primado da teoria frente à prática. Esse processo é acolhido dentro da teoria do agir comunicativo não nos termos de uma liquidação da pretensão racional do pensamento filosófico e sim de um encolhimento dos seus papéis tradicionais. À filosofia não cabe mais o papel de indicador de lugar relativo às ciências e nem o de juiz frente à cultura, mas ela pode e deve assumir o posto de cooperadora das ciências e de intérprete, trazendo para o horizonte do mundo vivido, realimentando-o através da linguagem argumentativa da crítica, as estruturas de pensamento envolvidas num ambiente cultural cada vez mais especializado6. É, portanto, no âmbito de um universo pós-metafísico de pensamento que se deve situar os temas fundamentais da Teoria do Discurso. Estes, por seu turno, podem ser vislumbrados através de uma conexão entre as teorias da ação e da sociedade, por um lado, e entre as teorias da racionalidade e da modernidade, por outro. É o que mostraremos a seguir numa mirada retrospectiva. Num segundo momento, apresentaremos os aspectos centrais da teoria discursiva da moral, do direito e da política.

II- Os fundamentos de uma teoria do agir comunicativo

De início, Habermas propõe sua teoria da ação a partir de uma rejeição da versão oficial. da racionalidade weberiana - cuja tipologia da ação repousa numa compreensão  monológica (sujeito solitário) e num modelo teleológico (ação relativa a fins) - e de uma ampliação da versão .oficiosa. - cuja tipologia da ação tem por base uma compreensão dialógica (relação entre ao menos dois sujeitos capazes de falar e de agir) e um modelo de interação social (agir comunicativo). Destarte, o autor reformula o conceito weberiano de racionalidade no plano de uma teoria da ação que se vincula à tradição da filosofia pós-wittgensteiniana da linguagem, sobretudo à teoria dos atos de fala7. Segundo Habermas, essa teoria permite construir uma espécie de síntese entre a ação e a linguagem, pela qual fica evidente que apenas as ações lingüísticas às quais o falante vincula uma pretensão de validade criticável são capazes de levar o ouvinte a aceitar a oferta contida num ato de fala, podendo assim se tornar eficazes como mecanismo de coordenação das ações. Contudo, essa síntese entre ação e linguagem não significa uma identificação entre o .falar. e o .agir.. Ao contrário. A teoria dos atos de fala possibilita precisamente distinguir as .ações lingüísticas. das .ações. no sentido estrito do termo . O aspecto fundamental é a distinção entre atos perlocucionários e atos ilocucionários. Enquanto para os atos ilocucionários o que é constitutivo é o significado do enunciado, para os atos perlocucionários o que é capital é a intenção do agente. É apenas com base nos atos ilocucionários que Habermas considera possível elucidar os conceitos de .intercompreensão. e de .agir orientado ao entendimento mútuo., pois é quando o locutor atinge seu objetivo ilocucionário que tem êxito a tentativa de reconhecimento intersubjetivo embutida em todo ato de fala. No cerne da teoria habermasiana da ação está a distinção entre a ação .orientada ao sucesso. (erfolgsorientiert) e a açãoorientada à intercompreensão. (verständigungsorientiert) - uma renovada configuração daquele binômio .trabalho. e .interação. extraído da filosofia do espírito do jovem Hegel. Levando-se também em conta as situações da ação, ou seja, sociais e não-sociais, podemos compreender a importância concedida por Habermas à noção de agir comunicativo: trata-se do único tipo de acão social orientada à intercompreensão.

O conceito de .agir comunicativo., diz Habermas, .que leva em conta o entendimento lingüístico como mecanismo de coordenação da ação, faz com que as suposições contrafactuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância imediata para a construção e a manutenção de ordens sociais: pois estas mantém-se no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas. Isso significa que a tensão entre facticidade e validade, embutida na linguagem e no uso da linguagem, retorna ao modo de integração de indivíduos socializados - ao menos de indivíduos socializados comunicativamente - devendo ser trabalhada pelos participantes. A citação, extraída da principal obra de Habermas em matéria de filosofia política e filosofia do direito, permite-nos perceber a conexão entre as teorias da ação e da sociedade. Ele sabe que a linguagem, enquanto veículo primário de intercompreensão, se sobrecarrega de tarefas no âmbito das sociedades modernas desencantadas, resultado da mudança progressiva do agir ritual pelo agir comunicativo nas funções de reprodução social. Habermas propõe, então, uma nova e complexa conexão dos conceitos básicos da teoria da ação com os da teoria dos sistemas. A impotência do agir comunicativo diante da complexidade do mundo moderno obriga-o a integrar a perspectiva sistêmica na teoria da sociedade, tendo em conta dois tipos de coordenação das ações: a que é obtida por intermédio do consenso dos participantes (perspectiva do mundo vivido) e a que é realizada pela via funcional dos observadores (ótica do sistema). A distinção entre .sistema., por um lado, e .mundo vivido., por outro, possibilita especificar duas esferas de reprodução social - material e simbólica -, com funções diferentes no plano da integração - sistêmica, de um lado, social, de outro -, associadas a seus respectivos contextos de ação, isto é: estratégica e comunicativa. Habermas integra a teoria do agir com a teoria dos sistemas, evitando uma absorção da primeira pela segunda através de sua noção bipolar de sociedade, pela qual combina as análises hermenêutica e funcionalista. Em Habermas, a teoria da ação tem primazia sobre a teoria sistêmica, pois ele estabelece primeiro os eixos de uma teoria da ação que, como vimos, repousa no conceito de agir comunicativo, para, em seguida, incorporar a perspectiva do sistema, e não o contrário. Nessa linha, o .mundo vivido é um conceito complementar do .agir comunicativo., na medida em que o primeiro representa o background social da ação orientada ao mútuo entendimento e o segundo o medium da reprodução simbólica do mundo da vida. Veremos oportunamente que essas formas distintas, inconfundíveis, de coordenação das ações sociais - estratégica e comunicativa - servem de fundamento para a explicação habermasiana do caráter dual do direito moderno. Por ora, e mantendo-nos ainda no âmbito da reconstrução de seu pensamento, cabe assinalar que é a determinação do mundo vivido, como base para as pretensões de validade, o que revela a existência de um acordo prévio, o qual deve ser restaurado formalmente através da comunicação desobstruída e, no caso das questões práticas, através de um procedimento discursivo que sirva de justificação de normas de ação em geral, fundidas em nossa relação não-problemática com o mundo. Nesse campo de saberes pré- teóricos, que somente se deixa acessar por intermédio da linguagem e que é a base na qual apoiamos nossas pretensões de validade, situa-se o horizonte compartilhado das noções de .verdade. (Wahrheit), de .correção. (Richtigkeit) e de .veracidade. (Wahrhaftifkeit). Resulta daí o resgate habermasiano de uma razão comunicativa incrustada no vínculo instaurado entre os
indivíduos através da linguagem, fruto da mudança do paradigma representado por uma razão centrada no sujeito monológico - inaugurado por Descartes, reiterado na análise transcendental de Kant, prolongado por Husserl e amplamente presente na contemporaneidade - pelo paradigma da intersubjetividade. Neste caso, o privilégio é dado não à mera atitude objetivante do sujeito frente ao mundo como totalidade, mas à atitude performativa adotada pelos participantes de qualquer interação mediada pela linguagem. Tal conceito de razão torna possível uma compreensão descentrada do mundo, que permite a adoção de várias atitudes - objetivante, normativa e expressiva - com relação aos diferentes .mundos. - objetivo, social e subjetivo.

Habermas evidencia o fato de que as três formas de racionalidade - cognitiva, moral e estética -, constitutivas do conceito moderno de razão (referentes às esferas culturais de valor anotadas por Weber e provenientes da arquitetônica kantiana da razão pura), estabilizam-se em processos de aprendizagem permanentes e cumulativos. Porém, a razão comunicativa não deve ser identificada com os tipos constitutivos da razão moderna. Ela funciona, em correta acepção, como sua matriz ou princípio produtivo, enraizada no contexto do mundo vivido ou do agir comunicativo. É precisamente pelo fato de não estar solidificada nas formas objetivas da racionalidade, por seu caráter informal e fluido, em que pese sua expressão originária, que Habermas designa a razão comunicativa como uma razão .tênue. ou .fraca. (schwache Vernunft).

Tal conceito de razão está associado aos processos de entendimento nos quais os participantes desempenham papéis de falantes e ouvintes. Em todas as interações lingüisticamente mediadas os falantes erguem pretensões de validade inerentes a seus atos de fala, relativas aos três setores básicos da realidade: .natureza externa. ou mundo objetivo (como conjunto dos estados de coisas existentes), .sociedade. ou mundo social (como conjunto das relações interpessoais legitimamente reguladas) e, por último, .natureza interna. ou mundo subjetivo (como conjunto das vivências a que todo locutor tem acesso privilegiado). A pressuposição fundamental para uma teoria da racionalidade é que as respectivas pretensões de validade levantadas por atos de fala - constatativos, regulativos e expressivos - podem ser criticadas e fundamentadas. Assim, na prática comunicativa cotidiana, o reconhecimento mútuo se processa com base nas pretensões de validade criticáveis, pelas quais o consenso é visado.
Este é imediato, no caso de um assentimento do auditor à oferta do ato de fala do locutor. No caso de uma rejeição, têm início os discursos argumentativos, que são prolongamentos do agir comunicativo por outros meios, uma espécie de ruptura no curso normal da interação, pelos quais busca-se honrar as pretensões de validade pela força não coerciva do melhor argumento. A intercompreensão, tida por Habermas como um telos da linguagem humana, representa o processo pelo qual se realiza um acordo, na base pressuposta de pretensões de validade mutuamente reconhecidas. Ora, tal acordo significa que os participantes do processo argumentativo aceitam a validade de um saber, vale dizer, sua força de obrigação intersubjetiva.
Neste sentido, Habermas fala em saber compartilhado, quando é constitutivo de um consenso racionalmente motivado., termo que serve para distinguir do mero compromisso e sobretudo de um consenso falacioso.E é precisamente nos pressupostos pragmáticos inerentes à linguagem que está embutida a noção de razão comunicativa, que fixa critérios de racionalidade em função dos procedimentos argumentativos pelos quais resgatam-se as pretensões de validade associadas aos três conceitos formais de mundo. Em suma: a razão comunicativa é um conceito procedimental de racionalidade, que se expressa numa compreensão descentrada de mundo.
Esse descentramento, constitutivo de uma perspectiva que conduz os participantes na fala argumentativa à superação da subjetividade inicial de suas respectivas concepções, revela o fato de que, para Habermas, a noção de razão comunicativa é produto da superação moderna das visões globais de mundo, de caráter religioso ou metafísico, as quais mantinham cingidos os conceitos formais de mundo e suas respectivas pretensões de validade. Não resta dúvida que é o programa desta razão procedimental, diferenciada e pós-convencional, mediadora formal dos aspectos plurais da realidade, que Habermas designa como projeto da modernidade, que ele considera atual e inacabado14. Assim, a idéia central da teoria habermasiana da modernidade é a de que um diagnóstico crítico de nossa época deve colocar em evidência não um excesso mas uma insuficiência de razão15, tratando-se aqui, bem entendido, de uma razão talhada em molde lingüístico, que evita a um só tempo a Cila do absolutismo e a Caribide do relativismo. Em nosso contexto, vale destacar um aspecto essencial das diversas teorias elaboradas em torno do paradigma do agir comunicativo, quer dizer: o vínculo interno, portanto não contingente, entre modernidade e racionalidade. No entender de Habermas, a razão moderna sempre produz alternativas a partir de si mesma, ainda quando se trata de denunciar suas próprias patologias.
Aliás, a questão da autofundamentação, a tarefa imperativa de buscar em si mesma seus fundamentos, longe das sugestões normativas de um passado já superado, tornou-se o problema maior da modernidade. Ora, pela introdução do tema, segundo a via da autocrítica, e pela precisão das regras, de acordo com a dialética do esclarecimento, Hegel inaugurou, segundo Habermas, o discurso crítico da modernidade, propondo uma leitura emblemática de nossa época. Assim sendo, a representação racional, por um lado, e a crítica determinada, por outro, são movimentos indissolúveis da autoconsciência filosófica dos tempos modernos, posta em evidência por Hegel, fraturada por sua herança conservadora e bombardeada em seu núcleo pela tradição oriunda de Nietzsche. Aqueles que prosseguem, de forma crítica, o projeto da modernidade, são confrontados com adversários que possuem em comum tanto a sensação de ruptura com seu horizonte categorial quanto a resolução de desperdir-se dele. Evitando colocar na berlinda o projeto moderno, Habermas, longe da aprovação entusiástica do desenvolvimento pós-iluminista, acredita em sua continuidade, isto é, na releitura atenta de seu sentido interno de caráter universal. Tal projeto da modernidade17, na visão do filósofo alemão, se caracteriza, entre outras coisas, por uma avaliação positiva, ainda que crítica, da racionalidade e de seus progressos, por uma defesa clara da democracia como forma madura de resolução dos conflitos e, finalmente, pela convicção inabalável de que as questões normativas são suscetíveis de discussão argumentativa. Essas características aparecem claramente na maneira como Habermas desenvolve sua contribuição no campo da filosofia prática.

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