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quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Direito e sociologia segundo o pensamento de Michel Foucault

Autor: Felipe Dutra Asensi
Ao realizar uma reflexão sobre a questão do homem e do conhecimento a partir da obra de Michel Foucault deve-se necessariamente compreender o que este autor entende por poder, genealogia, história e verdade. Portanto, trata-se de uma operação complexa sobre a qual nos debruçaremos neste artigo, de modo a prover elementos e, acima de tudo, instrumentos para que sociólogos do direito possam pensar a produção do conhecimento jurídico.
De início, devemos dizer que Michel Foucault analisa a questão da produção do conhecimento através do que chama de genealogia do poder, de modo a evidenciar que a verdade tem uma história e, portanto, não é algo metafísico ou transcendente. Mais propriamente, em vez de analisar o saber na direção das idéias, Foucault o analisa na direção dos comportamentos, das lutas, das decisões e das estratégias. Observa, portanto, a tática do discurso de uns em relação aos outros, e os caminhos empregados para se chegar a uma verdade.
Segundo Roberto Machado, “todas as suas análises estão centradas na questão do homem, isto é, formam uma grande pesquisa sobre a constituição histórica das ‘ciências do homem’ na modernidade” (MACHADO, 1981, p. 11). O objeto desta nova ciência
não é, portanto, a linguagem (falada, no entanto, só pelos homens), mas esse ser que, no interior da linguagem pela qual está cercado, possui ao falar o sentido das palavras ou das proposições que enuncia e obtém finalmente a representação da própria linguagem (FOUCAULT, 1987, p. 459)
Trata-se, assim, do estudo da representação e de como esta representação produz certos saberes através de relações sociais permeadas pelo poder. É justamente a luta, o combate e, conseqüentemente, o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento. A rigor, o poder não existe; o que existe são relações de poder as quais fundarão o conhecimento.
Ou seja, a verdade não existe fora do poder ou sem poder; ela é produzida como efeito de poder ou, retomando Nietzsche, como efeito do choque entre duas espadas. A centelha que advém do choque entre as duas espadas possui uma composição que não é exclusiva de uma ou de outra espada, mas de ambas. Assim, a verdade é produto do choque de conhecimentos. Da mesma forma, cada choque produz uma centelha peculiar, diferente, o que caracteriza que entrechoques das mesmas espadas podem produzir verdades distintas. Da mesma forma, cada sociedade tem seu regime de verdade, isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros. Neste artigo será analisado em que medida a produção de verdades atua no campo do direito, evidenciando que o direito, enquanto produto social, também se encontra permeado por relações de poder.
2. Breve nascimento das ciências do homem
Michel Foucault traça, no livro As palavras e as coisas, uma análise da constituição das ciências humanas partindo da idéia de que, na verdade, toda a continuidade ao nível das idéias representa apenas um efeito de superfície. Em um nível mais profundo - o arqueológico – observa-se que ocorreu uma mudança no século XIX: as ciências humanas passam a ser tratadas do ponto de vista da descontinuidade porque pressupõem a idéia de representação.
A representação, porém, não é, simplesmente, um objeto para as consciências humanas, mas, como se acaba de ver, o próprio campo das ciências humanas, e em toda a sua extensão; ela é o soco geral dessa forma de saber, aquilo que a torna possível (idem, p. 472)
Segundo o autor, o ser humano não tem história:

uma vez que ele fala, trabalha e vive, acha-se, no seu próprio ser, inteiramente misturado a historias que não lhe são nem subordinadas nem homogêneas. Pela fragmentação do espaço por onde se estendia continuamente o saber clássico, pelo enrolamento de cada domínio, assim libertado, sobre o seu próprio devir, o homem que surge no inicio do século XIX é um ser “desistoricizado” (idem, p. 478-479)
Ora, segundo Roberto Machado, a tese de Foucault evidencia que as ciências empíricas e a filosofia podem explicar o aparecimento desse conjunto de discursos denominados ciências humanas porque é com elas que o homem passa a desempenhar duas funções diferentes e complementares no âmbito do saber:
por um lado, é parte das coisas empíricas, na medida em que vida, trabalho e linguagem, são objetos – objetos das ciências empíricas – que manifestam uma atividade humana; por outro lado, o homem – na filosofia – aparece como fundamento, como aquilo que torna possível aquele saber. O fato de o homem desempenhar duas funções no saber da modernidade, isto é, sua existência como coisa empírica e, como fundamento filosófico é chamado por Foucault de a priori histórico, e é ele que explica o aparecimento das ciências humanas, isto é, do homem, considerado não mais como objeto ou sujeito, mas como representação (MACHADO, 1981, p. 124-125)
Portanto, há duas perspectivas: uma que entende o homem como objeto e outra que entende o homem como sujeito de conhecimento. Desta forma, o homem desempenha uma dupla função no saber moderno – sujeito e objeto -, e é justamente essa duplicidade que constitui o a priori histórico que explica o aparecimento das ciências humanas e as formas jurídicas.
3. Arqueologia, genealogia e história
Basicamente, a arqueologia tem o propósito de descrever a constituição do campo, entendendo-o como uma rede formada na inter-relação dos diversos saberes. E é exatamente nesta rede que se abre o espaço de possibilidade para a emergência do discurso. Para Roberto Machado,
a riqueza do método arqueológico é ser um instrumento capaz de refletir sobre as ciências do homem enquanto saberes – investigando suas condições de existência através da analise do que dizem, como dizem e por que dizem – neutralizando a questão de sua cientificidade e escapando assim do desafio impossível da recorrência, sem, no entanto, abandonar a exigência de realizar uma análise conceitual capaz de estabelecer descontinuidades, não certamente epistemológicas, mas arqueológicas, isto é, situadas ao nível dos saberes (idem, p. 11)
A genealogia, por sua vez, busca a configuração das positividades dos saberes a partir das condições de possibilidades externas a eles próprios; ou seja, considera-os como elementos de natureza essencialmente estratégica. Procura-se a explicação dos fatores que interferem na sua emergência e adequação ao campo discursivo, defendendo sua existência como elementos de poder. Para Roberto Machado,
O objetivo da genealogia é neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal e da ideologia de um conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência. Todo conhecimento, seja ele cientifico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político. E isso não porque cai nas malhas do Estado e é apropriado por ele, que dele se serve como instrumento de dominação, desvirtuando seu núcleo essencial de racionalidade. Mas porque todo saber tem sua gênese em relações de poder (idem, p. 198-199)
De fato, a arqueologia e a genealogia são dois conjuntos complementares e inseparáveis: de um lado, as formas da seleção, adequação ou exclusão operam submetendo o discurso ao controle; de outro, este dá sustentação à análise da proveniência, que deve levar em conta os mecanismos e estratégias postos em prática nas relações de força e, principalmente, os limites e regras que emergem deste dispositivo de poder e se objetivam através das regularidades discursivas que delimitam o espaço de existência do discurso.
Assim, Foucault entende a genealogia como uma atividade de investigação árdua, que procura os indícios nos fatos desconsiderados, desvalorizados e mesmo apagados pela história “oficial”. A genealogia é uma verdadeira sociologia do não-dito em relação ao dito Segundo o autor,
O historiador não deve temer as mesquinharias, pois foi de mesquinharia em mesquinharia, de pequena em pequena coisa, que finalmente as grandes coisas se formaram. À solenidade de origem, é necessário opor, em bom método histórico, a pequenez meticulosa e inconfessável dessas fabricações, dessas invenções (FOUCAULT, 1999, p. 16)
A genealogia requer, então, a busca da singularidade dos acontecimentos, fazendo emergir os espaços excluídos ou esquecidos pelo discurso “verdadeiro”. Trata-se, nesta análise, de considerar os saberes locais - não legitimados ou valorizados pelo discurso verdadeiro - que, ao ocupar um lugar qualificado como científico, ordena, hierarquiza, classifica os diversos saberes. Advém, daqui, toda a idéia de considerar o pluralismo jurídico presente na sociedade contemporânea, que preconiza que para além do direito oficial há esferas na própria sociedade que também são responsáveis pela produção de direitos particulares. Neste sentido, o Estado não é o único ou exclusivo produtor de direitos (apesar de formalmente o ser), pois a proposta pluralista admite que há uma diversidade de centros produtores, entendendo “direito” no sentido mais amplo do termo.
A genealogia pode e deve escutar a história, pois
A história, com suas intensidades, seus desfalecimentos , seus furores secretos, suas grandes agitações febris como suas síncopes, é o próprio corpo do devir. É preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma na idealidade longínqua da origem (FOUCAULT, 2004, p. 20)
É mister, então, observar os acasos e as descontinuidades, pois se há algum segredo a desvendar, é que as coisas não têm essência. Neste sentido, a sua suposta essência foi construída a partir de situações especificas contextualizadas histórica e socialmente. Foucault com esta afirmação dialoga diretamente com os jusnaturalistas, desvendando e condenando a idéia de direito natural e inaugurando a idéia de um direito construído socialmente por relações de poder. Deste modo, a genealogia propõe evidenciar os acidentes e os acasos, na medida em que não existe uma História, mas sim histórias; da mesma forma que não existe Direito, mas direitos.
A genealogia não se opõe à história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da “origem” (idem, p. 16)
Neste sentido, em contraposição a essa história tradicional que busca na origem das coisas a sua razão, temos uma história efetiva que vê as coisas sob o ponto de vista da descontinuidade, dos descompassos, isto é, do poder. A história é efetiva na medida em que todo saber sempre é perspectivo, ou seja, parte de um determinado ângulo e, de forma deliberada, movimenta-se com o fim de apreciar e avaliar. Basicamente, este olhar sabe para o que olha, assim como sabe o lugar de onde olha. Um exemplo interessante dessa arbitrariedade do olhar diz respeito ao fato de na Inglaterra existirem mais leis de proteção à propriedade do que de direitos humanos, o que denota que o direito reflete justamente a inclinação de poderes e interesses presentes em sua produção.
Mais precisamente, a efetividade da história consiste no fato dela introduzir o descontínuo em seu próprio ser, em seu próprio processo, pois
a história “efetiva” olha para o mais próximo, mas para dele se separar bruscamente e se apoderar à distância  (olha semelhante ao do médico que mergulha para diagnosticar e dizer a diferença). O sentido histórico está muito mais próximo da medicina do que da filosofia (idem, p. 29)
4. Conhecimento e verdade
Michel Foucault, em sua análise sobre verdade e conhecimento, parte do princípio de que não há uma relação necessária entre o conhecimento e as coisas a conhecer, ou seja, o que se sabe a respeito de algo não é próprio de sua essência. O conhecimento não faz parte da natureza humana e, então, não é algo que diz respeito à essência do homem; o conhecimento é algo inventado. Assim, “o conhecimento não é instintivo, é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natural” (FOUCAULT, 1999, p. 17). Logo, temos “uma natureza humana, um mundo, e algo entre os dois que se chama o conhecimento, não havendo entre eles nenhuma afinidade, semelhança ou mesmo elos de natureza” (idem, p. 18). Da mesma forma, o conhecimento produzido no campo do direito não é algo supra-social ou natural.
            Por não fazer parte da natureza humana, o próprio conhecimento também não pressupõe uma relação de afinidade ou semelhança com as coisas; ao contrário, o conhecimento exprime relações de poder e dominação, as quais desmistificam a idéia de algo unificado. Por essa razão, Foucault ironicamente afirma que, caso desejemos saber efetivamente o que é o conhecimento, devemos nos aproximar dos políticos, e não dos filósofos, haja vista que a política pressupõe entrechoques de poder e é a partir da política que se constrói o direito.
            Na verdade, “o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate” (FOUCAULT, 2004, p. 18). Portanto, é através do embate de instintos que se chega a um compromisso, a algo inventado chamado conhecimento. O próprio discurso “não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos”. (FOUCAULT, 2005)
            Assim, o conhecimento nada mais é do que um produto de relações de luta. Foucault procura evidenciar que existe uma história da verdade e que, portanto, ela também é inventada, é produto de relações de poder. Da mesma forma, como vimos, “uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tem posto ao saber humano” (FOUCAULT, 1987, p. 501), ou seja, o homem também foi inventado. Portanto, a própria idéia de direitos do homem passa de algo universal para algo situado historicamente e potencialmente relativizável.
5. Hermenêutica e discurso
Como vimos, Foucault parte do princípio de que não há nenhuma essência humana, assim como não existe nenhuma verdade transcendente, pois toda hermenêutica pressupõe uma verdade a ser mostrada por um suposto saber. Da mesma forma, noções como as de unidade e identidade, quando confrontadas com a proposta de Nietzsche, ficam diluídas por suporem sempre um pretenso Eu. Para o autor, os “discursos devem ser tratados como práticas descontínuas que se cruzam, que às vezes se justapõem, mas que também se ignoram ou se excluem” (FOUCAULT, 2005). Ademais, um verdadeiro discurso não pode reconhecer, evidenciar ou exprimir a vontade de verdade que lhe permeia; ele deve, desde o início, mostrar-se como algo unívoco, o que denota o seu caráter excludente. Na teoria da argumentação jurídica a proposta de Foucault ganha força, na medida em que o argumento jurídico nem sempre está vinculado aos fatos ou ao mundo do direito. Por vezes, funciona como argumento retórico que visa única e exclusivamente a adesão do interlocutor.
Neste sentido, o conhecimento como derivado da vontade de saber é uma construção que resulta não de instintos básicos ou naturais, mas de confrontos, onde cada instinto deseja instituir como norma universal a sua perspectiva particular. O ato discursivo, nesta perspectiva, sempre se impõe, Interpretar, por sua vez, não é apenas encontrar um significado comum e universal para determinado signo; mas, principalmente, imprimir e produzir uma verdade que submete o outro.
Isso justifica o fato da genealogia visar a análise do poder em seu contexto prático - que está ligado às condições que permitiram sua emergência - fazendo a análise histórica das condições políticas de possibilidade dos discursos. Em suma, a genealogia não busca a origem, mas a proveniência:
A pesquisa da proveniência não funda, muito pelo contrário: ela agita o que se percebia imóvel, ela fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se imaginava em conformidade consigo mesmo (FOUCAULT, 2004, p. 21)
Da mesma forma que os discursos estão permeados por relações descontínuas, a interpretação (dentre elas, a jurídica) também se encontra permeada por relações de poder. Segundo Foucault, a sociedade se constitui na medida em que instaura a violência dentro de seu sistema de regras, e prossegue a dominação de forma institucionalizada. Portanto,
O grande jogo da historia será de quem se apoderar das regras, de quem tomar o lugar daqueles que as utilizam, de quem se disfarçar para perverte-las, utiliza-las ao inverso e volta-las contra aqueles que as tinham imposto; de quem, se introduzindo no aparelho complexo,o fizer funcionar de tal modo que os dominadores encontrar-se-ão dominados por suas próprias regras (idem, p. 25-26)
Ora, se interpretar é se apoderar por violência de um sistema de regras que não tem em si significação essencial, e lhe impor uma direção, então o caminho da humanidade é uma série de interpretações. Em decorrência disto,
se a interpretação nunca pode se concluir, é muito simplesmente porque nada há a interpretar. Nada há de absolutamente primeira a interpretar, pois no fundo tudo já é interpretação; cada signo é nele mesmo não a coisa que se oferece à interpretação, mas interpretação de outros signos (FOUCAULT, 2000, p. 47)
6. O direito como campo de conflito
            Em A Verdade e das Formas Jurídicas, Foucault realiza uma análise sobre a constituição do direito. Basicamente, traz um resgate das formas jurídicas que emergiram ao longo da história, realizando uma reconstituição de como o direito foi passando da idéia de justiça privada para a de justiça pública. Deve-se dizer, inicialmente, que o direito brasileiro recebe influencia direta do direito romano-germânico, o mesmo que influenciou o ordenamento jurídico da França, país de Foucault. Portanto a análise sociológica que este autor realiza, pode-se dizer, é diretamente aplicável ao nosso ordenamento, o que acentua a relevância do tema do direito para os estudos de sociólogos brasileiros. Vejamos uma premissa de Foucault:
O Direito Germânico não opõe dessa luta a guerra à justiça, não identifica justiça e paz. Mas, ao contrário, supõe que o direito não seja diferente de uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre os indivíduos e de encadear os atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra (FOUCAULT, 1999, p. 56-57)
Desta forma, o direito é essencialmente o espaço do conflito, que se desenrola de forma institucionalizada e mediante alguns procedimentos comuns às partes em litígio. Segundo Foucault, “Entrar no domínio do direito significa matar o assassino, mas matá-lo segundo certas regras, certas formas” (idem, p. 57). Temos, então, o direito como a manifestação institucionalizada da guerra; entretanto não se trata de uma guerra que produz danos físicos a outrem, mas sim uma guerra de procedimentos, de argumentos, de fatos, de direitos.
            Na guerra o vencedor é nitidamente visível, pois é aquele que sobrevive à luta. No direito não há como determinar o vencedor a partir das duas partes, pois estamos no embate de duas verdades. Então, faz-se mister uma terceira pessoa, alheia à controvérsia, que servirá como mediadora e, em seguida, proferirá um veredicto sobre qual verdade prevaleceu. Observe que não se trata de determinar qual verdade é efetivamente verdadeira, mas sim de determinar qual verdade efetivamente prevalece.
            Neste sentido, os indivíduos não terão mais o direito de resolver seus litígios, pois será um poder exterior a eles que se imporá:
O soberano, o poder político vêm, desta forma, dublar e, pouco a pouco, substituir a vítima. Este fenômeno, absolutamente novo, vai permitir ao poder político apossar-se dos procedimentos judiciários. O procurador, portanto, se apresenta como o representante do soberano lesado pelo dano. [...] Assim, na noção de crime, a velha noção de dano será substituída pela de infração. A infração não é um dano cometido por um individuo contra outro; é uma ofensa ou lesão de um individuo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano (idem, p. 66)
            Em outras palavras, o soberano (em sentido amplo entendido também como o Estado) é não somente a parte lesada, mas a que exige reparação. A lesão simbólica ao soberano é comparável à comissão de um pecado, o qual deve receber a devida sanção.
            Nota-se, assim, que a partir da possibilidade de um terceiro resolver a contenda entre as partes, e a partir da possibilidade do crime lesar o soberano, ocorre uma mudança na concepção de justiça. De uma justiça privada a qual não pressupunha um poder exterior, temos uma justiça pública que é realizada pelo terceiro alheio ao litígio e que detém a legitimidade para tal.
            Essa transição do privado para o público se dá principalmente através da apropriação pelo soberano dos procedimentos e mecanismos de resolução de conflitos. A publicização do direito, portanto, se dá na medida em que ocorre a concentração da produção do direito nas mãos do soberano. E o agente que permite essa publicização é o procurador, que se encarregava de levar o direito às partes através de visitas periódicas, servindo como a extensão capilar do poder soberano. O principal procedimento adotado pelo procurador era o inquérito.
O inquérito é precisamente uma forma política, uma forma de gestão, de exercício de poder que, por meio da instituição judiciária, veio a ser uma maneira, na cultura ocidental, de autentificar a verdade, de adquirir coisas que vão ser consideradas como verdadeiras e de as transmitir. O inquérito é uma forma de saber-poder. É a análise dessas formas que nos deve conduzir à análise mais estrita das relações entre os conflitos de conhecimento e determinações econômico-políticas (idem, p. 78)
            Ou seja, é a partir do inquérito que se torna possível o embate de verdades institucionalizado, procedimentalizado e regulamentado. Neste sentido, a conclusão do inquérito funciona como uma forma de dizer qual a verdade prevaleceu naquele litígio e diante daquelas circunstâncias, produzindo um saber-poder. É saber porque é fruto do embate de verdades; é poder porque impõe qual da verdades deve prevalecer de forma coercitiva. O direito, assim, é permeado por relações de poder que buscam através do embate de verdades, uma solução comum designada por um terceiro. Daí resulta a importância do discurso e da hermenêutica como formas de persuasão.
7. Conclusão – a originalidade de Foucault
A importância do pensamento de Foucault reside na desconstrução da idéia de verdade unívoca ao apontar a verdade como uma produção histórica e social, indicando a multiplicidade e heterogeneidade presentes nos diferentes objetos. Com isso, nega-se a possibilidade de apreendê-los de forma objetiva e neutra, e coloca-se em xeque qualquer conhecimento que se diz baseado em uma verdade, seja ela revelada ou apreendida da “realidade”.
Mais propriamente, as práticas consideradas científicas afirmam que devem se resguardar das misturas, das impurezas e poluições que estão ao seu redor e circulam pelo mundo. Para Foucault a aposta é nas multiplicidades, nas práticas sociais como produtoras dos objetos, saberes e sujeitos que estão no mundo. Aposta-se na possibilidade da criação e da invenção e na provisoriedade das coisas.
O autor inclusive radicaliza essa idéia ao afirmar que o próprio homem foi inventado. Vejamos, como exemplo, a última frase do livro As palavras e as coisas: “então pode-se apostar que o homem se desvaneceria, como à beira do mar um rosto de areia” (FOUCAULT, 1987, p. 502).
A situação se mostra da seguinte forma: temos um desenho na areia – um rosto – que some na medida em que a água do mar passa sobre ele, já que está desenhado na areia. Foucault compara este rosto ao homem, isto é, o homem é visto como algo efêmero, descentrado, contido à sua condição de produto histórico. Neste sentido, o autor demonstra que o homem tem uma localização na história, e por isso não faz parte de qualquer essência ou metafísica e, por conseqüência, não se pode falar em direitos universais do homem.
Ademais, o pensamento de Foucault contribui decisivamente para uma atitude de estranhamento das instituições, procedimentos e conteúdos jurídicos existentes, na medida em que demonstra que toda e qualquer relação social está baseada em relações de poder. Ou seja, o social está intimamente relacionado ao poder, e portanto o direito, enquanto fruto social, reflete esta relação assimétrica.
Da mesma forma, a sua concepção de hermenêutica e verdade atua decisivamente para descaracterizar o discurso jurídico como um discurso imparcial, isento e universal. Fica evidente que as formas e os discursos sobre o direito estão relacionados a práticas de poder concretas do seio social que vão influenciar a sua produção.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

DESMISTIFICANDO O ERRO DE TIPO E ERRO DE PROIBIÇÃO

Por Eduardo Viana P. Neves
introdução
Tecnicamente importante distinguirmos erro e ignorância. Nelson Pizzoti Mendes nos dá uma noção exata da distinção, qual seja: ”A ignorância é a ausência total de noção acerca de determinado objeto. Já o erro é o conhecimento falso do objeto” . Portanto, para o autor, o erro seria um estado positivo; já a ignorância um estado negativo.
Partindo desta distinção, formulamos nosso entendimento, a saber: o erro é a falsa representação da realidade; enquanto ignorância é a falta de conhecimento sobre a realidade. Não obstante a diferenciação conceitual dos institutos aqui analisados, constatamos que o Código Penal Brasileiro faz, equivocadamente, uma equiparação entre ambos.
De início, imperioso fixar a seguinte premissa: o erro pode incidir sobre os elementos do tipo, teremos nesta hipótese o erro de tipo; se recair sobre a ilicitude da conduta, há o erro de proibição.
É preciso deixar claro que tais denominações não guardam exata correspondência com os antigos “erro de fato” e “erro de direito”. O primeiro instituto, que era previsto no art. 17 do antigo CP, excluía o dolo e, por via de conseqüência, a culpabilidade, uma vez que naquele momento, coerentemente com a Teoria Causal-naturalista de Von Liszt e Beling que influenciou o legislador penal da época, o dolo encontrava-se situado na culpabilidade.
Quanto ao erro de direito, não havia escusa. Baseado no aforismo “error júris nocet” (como observa Nelson Hungria ao comentar o Código Penal de 1940), seria eventualmente uma atenuante, conforme previa o art. 48 nº III do antigo codex. É de suma importância chamar atenção que naquele momento, qual seja, até o ano de 1984, vigorava a Teoria Unitária do Erro, vale dizer, todo erro recaía na culpabilidade.
Com a reforma de 1984, através da lei nº 7.209, sob a influência evidente de WEZEL – jurista Tudesco – e sob o manto de sua Teoria Finalista, foi alterado o sistema adotado pelo Código Penal dando novo regramento ao erro. A principal modificação foi o deslocamento do dolo e da culpa para a Tipicidade (nos furtamos a tecer maiores divagações, uma vez que não é este o objeto do presente ensaio).
  ERRO DE TIPO
Tipo é a descrição legal abstrata da conduta proibida. Quando o indivíduo pratica um fato e ele se subsume à descrição legal, tem-se o crime, um juízo positivo de tipicidade, surgindo o “ius puniendi” do Estado. Porém, podem ocorrer circunstâncias que, se objetivamente constatadas, excepcionarão o poder de punir do Estado e dentre estas exceções situa-se o erro de tipo.
Esta modalidade de erro está no art. 20, “caput”, do Código Penal. Ocorre, no caso concreto, quando o indivíduo não tem plena consciência do que está fazendo; imagina estar praticando uma conduta lícita, quando, na verdade, está a praticar uma conduta ilícita, mas que, por erro, acredita ser inteiramente lícita.
O erro sobre o fato típico diz respeito ao elemento cognitivo, o dolo, vale dizer, a vontade livre e consciente de praticar o crime, ou assumir o risco de produzi-lo (dolo direto e eventual, respectivamente, CP art. 18, I) .
Por isso, de acordo com o que dispõe o art. 20, caput, do CP, o erro de tipo exclui o dolo e, portanto, a própria tipicidade (como visto, o dolo foi deslocado para Tipicidade de acordo com a Teoria Finalista). Observe não há qualquer mácula à culpabilidade, por força disso, se o erro for vencível, haverá punição por crime culposo, desde que previsto no tipo penal (trata-se de um consectário lógico do Princípio da Excepcionalidade do crime culposo, art. 20, caput, CP, modalidade examinada mais adiante).
3.1. Formas de Erro de Tipo
O Erro de Tipo pode apresentar-se de duas formas: o erro “essencial” e “acidental”.
3.1.1 Erro Essencial
Ocorre o erro essencial quando ele recai sobre elementares, qualificadoras, causas de aumento de pena e agravantes, ficando-as excluídas se o erro foi escusável. Portanto, nesta forma, o agente não tem plena consciência ou nenhuma de que esta praticando um conduta típica.
O erro essencial por sua vez se desdobra em duas modalidades:
a) Escusável ou Invencível – está previsto no art. 20, “caput”, 1.º parte. Verifica-se quando o resultado ocorre, mesmo que o agente tenha praticado toda diligencia necessária, em suma, naquela situação todos agiriam da mesma forma.
Nesta modalidade, ter-se-á por excluído o dolo e também a culpa. Logo, se o erro recai sobre uma elementar, exclui o crime, se recai sobra qualificadora, exclui a qualificadora e assim por diante.
As conseqüências processais são de extrema importância pois, havendo inquérito, deve o membro do “parquet” pedir seu arquivamento e, de outro lado, se houver ação penal deve pedir o trancamento.
b) Vencível ou Inescusável – previsto no art.20, 1º parte, CP. Se dá quando o agente, no caso concreto, em não agindo com a cautela necessária e esperada, acaba atuando abruptamente cometendo o crime que poderia ter sido evitado.
Ocorrendo essa modalidade de erro de tipo, há a exclusão do dolo, porém subsiste a culpa. Portanto o réu responde por crime culposo se existir a modalidade culposa, isso em decorrência do Princípio da excepcionalidade do crime culposo.
Alguns doutrinadores chamam essa modalidade de “culpa imprópria” e, como o próprio nome sugere, ela é excepcional, não seguindo os regramentos da modalidade de “culpa comum”, motivo pelo qual, v.g, admite-se tentativa.
À guisa de exemplo, para que melhor se entenda o erro vencível: tio e sobrinho saem para uma caçada, cansados de esperar pela presa o sobrinho resolve sair para buscar água. Ao retornar, já no crepúsculo vespertino, seu tio acha que se trata da tão aguardada caça e, sem tomar as cautelas necessárias, acaba atirando. Ao se dirigir à suposta presa alveja, percebe que é o sobrinho. Neste caso o tio responde por homicídio culposo.
3.1.2 Erro de Tipo Acidental
O erro acidental, que recai sobre circunstâncias secundárias do crime. Não impede o conhecimento sobre o caráter ilícito da conduta, o que por consectário lógico não obsta a responsabilização do agente, devendo responder pelo crime.
Esse erro possui várias espécies, a saber:
a) Erro sobre o objeto: o agente supõe estar praticando a conduta contra o objeto material que deseja, mas por erro acaba atingindo outro. Ex: uma pessoa querendo furtar um aparelho de televisão que encontra-se em embalagem fechada, entra na loja da vítima, acaba, porém, levando uma máquina de lavar. Observe que o erro do agente é acidental e irrelevante, consoante mencionado supra, respondendo assim pelo crime.
b) Erroin persona“: o agente com sua conduta criminosa visa certa pessoa, mas por erro de representação, acredita ser aquela em que efetivamente deseja atingir. Um exemplo ajuda entender essa espécie: Júnior, atirador de elite, resolve dar cabo na vida de Maria, sua sogra. Para tanto, usa de seus conhecimentos de atirador, esperando que sua sogra passe, como de costume, pelo local onde a aguarda. Então, vem uma mulher com as mesmas características físicas de sua sogra. João prepara sua melhor mira e atira, mas acaba matando Marta, irmã gêmea de Maria, sua sogra.
Observe que não houve falha na execução do delito, apenas ocorreu uma falsa representação da realidade, dado a semelhança física entre as irmãs.
Ocorrendo o erro de pessoa, o agente responde como se tivesse atingindo a pessoa que pretendia e não as que efetivamente atingiu. No exemplo supra citado o agente responde como se tivesse atingido a sogra. Outra não é exegese do art 20, § 3.º CP.
c) Erro na execução ou “aberratio ictus“: ocorre quando o agente por execução imperfeita acaba atingindo um terceiro que, em regra, não fazia parte do seu “animus“. Ex: Júnior, um desastrado, resolve matar seu irmão. Quando este passa pelo local esperado Júnior atira, mas por erro de pontaria, acaba não por atingir seu irmão, mas a namorada deste, que estava ao seu lado.
Havendo resultado único o agente responde por um só crime, mas levando-se em conta as condições pessoa que queria atingir, nesse sentido art. 73 CP.
Porém, pode ocorrer resultado duplo, vale dizer, atingiu dolosamente a pessoa que queria e culposamente um terceiro, neste caso há concurso formal perfeito (ou normal ou próprio), uma vez que não existe desígnios autônomos, devendo ser considerada uma só pena aumentando-se de 1/6 a ½. É o Sistema da Exasperação.
Pode ocorrer, ainda, como afirmamos retro, que esteja no “animus” do agente atingir as duas pessoas, portanto um duplo resultado doloso. Nesta hipótese afirma-se haver desígnios autônomos, devendo então as penas serem somadas, é o Sistema do Cúmulo Material. Tem-se na hipótese manejada o concurso formal impróprio (ou anormal ou imperfeito).
De notar-se que o erro na execução difere do “erro in persona” porque neste, o agente atinge a vítima pensando ser a desejada. Ou seja, há uma falsa representação da realidade. No erro na execução, o agente quer atingir a vítima desejada e sabe que é ela, só que erra na execução, e atinge outra pessoa (vítima alvejada).
d) “aberratio causae“: neste caso o erro recai sobre o nexo causal, é a hipótese do dolo geral. Um exemplo ajuda a compreender: A dá várias facadas em B e, presumindo que esteja morto, atira-o de um precipício, mas B vem a morrer com a queda e não em razão das facadas – nesses casos não haverá exclusão do dolo, punindo-se o autor por crime doloso.
e) Resultado diverso do Pretendido ou “aberratio delicti” – nesta espécie de erro do tipo, o agente quer atingir determinado bem jurídico, mas atinge outro. Ex: Júnior quer atingir a vidraça, mas por erro de pontaria acaba por acertar a cabeça de José. Neste caso o agente só responde por lesões culposas, que absorve a tentativa de dano.
Porém se ocorrer duplo resultado, ou seja, atinge a vidraça e pessoa, o agente responde por crime de dano consumado em concurso formal com crime de lesões corporais culposas, aplicando-se, no momento de aplicação da pena, o sistema da exasperação, já explicado anteriormente e para onde remetemos o leitor.
Por fim, não se pode deixar de mencionar, responde pelo crime o terceiro que determina o erro, na forma do art. 20, § 2º do CP. Colhamos aqui o exemplo dado pelo professor Mirabete, para melhor compreensão da hipótese aventada: “suponha-se que o médico, desejando matar o paciente, entrega à enfermeira uma injeção contendo veneno, afirma que se trata de um anestésico e fez com que ela aplique”. Conclui-se que a enfermeira não agiu dolosamente, mas por um erro que terceiro determinou, neste caso apenas o médico responde pelo crime de homicídio.
  ERRO DE PROIBIÇÃO
Assim dispõe o art. 21, caput, CP: “O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuir a pena de um sexto a um terço”.
É de suma importância que neste instante já tenhamos uma idéia exata da distinção entre a ignorância da lei e ausência de conhecimento da ilicitude, tema que já fora comentado quando da introdução e para onde remetemos o leitor. Faz-se nodal se ter em mente um premissa, qual seja, o que se exige não é uma consciência induvidosa da ilicitude, pôs se assim o fosse, somente os sábios operadores do direito a teriam, o que se exige é uma potencial consciência (ou como afirmava Mezger: “violação paralela na esfera do profano“), que decorre necessariamente do conjunto de valores éticos e morais de cada individuo.
É preciso que isso fique bem claro. Nosso parlamento é uma metralhadora legiferante – basta observar que hoje existem mais de mil tipos penais – o que acarreta, inexoravelmente, uma multiplicidade de leis, diga-se de passo, desprovidas de qualquer cunho técnico, isso para dizer o mínimo. Motivo pelo qual, por vezes, se torna impossível, até para nós operadores do direito, saber o que é permitido ou que é proibido.
O nosso CP, na primeira parte do art. 21 foi fiel a regra de que o desconhecimento da lei não é escusável, ou seja, se o agente desconhece a lei que proíbe abstratamente aquele comportamento, essa ignorância não o exime de responsabilidade. Regra essa que guarda total compatibilidade com o art. 3º LICC, que reza: “a ninguém é dado descumprir a lei alegando que não a conhece”. Até por que, se se pudesse alegar o desconhecimento da lei, para alguém excusar-se da responsabilidade, não haveria possibilidade positiva de aplicação, tantas seriam as desculpas de desconhecimento.
De plano, fixe-se a afirmação que o erro de proibição exclui a culpabilidade, por inexistência de potencial conhecimento de ilicitude. Isto porque o agente atua com vontade dirigida, ou seja, dolo, portanto o primeiro requisito do fato típico encontra-se superado. A solução da questão se dará na culpabilidade. Esta não se aperfeiçoa, uma vez que se pratica o fato por erro quanto a antijuridicidade de sua conduta. Observe que podemos falar em injusto penal, que é o fato já valorado como típico e antijurídico, mas não punível por faltar a culpabilidade.
O erro de proibição se faceta nas seguintes formas: direto, indireto (erro de permissão), ambos denominados de discriminantes. Alguns autores falam em erro mandamental, mas não teceremos comentários sobre eles
O erro de proibição direto recai sobre seu comportamento, o agente acredita sinceramente que sua conduta é lícita. Pense, por exemplo, turista que trazia consigo maconha para consumo próprio, pois em seu país era permitido tal uso.
Por seu turno, o erro de proibição indireto se dá quando o agente supõe que sua ação, ainda que típica, é amparada por alguma excludente de ilicitude pode ocorrer em duas situações, quais sejam: 1. Quando aos limites – o agente pratica o fato porém desconhece seus limites, como por exemplo, João ameaça José, este por sua vez vai à sua casa, pega a arma e mata João. Se enganou, pois pensou que a legítima defesa poderia se dar em relação a mal futuro. Desconhecia José que a referida excludente de ilicitude se refere à agressão atual e iminente. 2. Quanto à existência: o agente supõe presente uma causa que está ausente, à guisa de exemplo pode-se citar o caso de alguém que, sendo credor de outrem, entende que pode ir à casa deste pegar o dinheiro devido, sendo certo que tal atitude configura crime de Exercício arbitrário das próprias razões (art.º 345 CP)
Não se deve olvidar que, apesar de o desconhecimento da lei ser inescusável, é previsto como circunstância atenuante pelo art. 65, II, CP.
AS DESCRIMINANTES PUTATIVAS FÁTICAS
As Descriminantes Putativa Fáticas é um dos temas do nosso direito material onde não há, nem se espera que haja, consenso entre os doutrinadores. Trata-se de modalidade de erro que recai sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação.
Quanto à sua conceituação problemas não há, a grande celeuma que se instala sobre o instituto se refere à sua natureza jurídica. Desse modo, seriam as descriminantes putativas erro de tipo ou erro de proibição?
Algumas teorias tentam solucionar o problema, vejamos algumas:
1- Teoria limitada da culpabilidade: seria erro de tipo permissivo e, por analogia, teria o mesmo tratamento do erro de tipo ( se escusável, há atipicidade; se inescusável, pena do crime culposo);
2- Teoria dos elementos negativos do tipo: seria erro de tipo ( se invencível, atipicidade; se vencível, pena do crime culposo;
3- Teoria extremada da culpabilidade: trata-se de erro de proibição ( se invencível, isenção de pena; se vencível, culpabilidade dolosa atenuada;
4- Teoria do erro orientada às conseqüências: o agente comete um crime doloso quando atua com essa espécie de erro, mas deve sofrer as conseqüências de um crime culposo se evitável o erro porque o desvalor da ação é menor; se inevitável, há isenção de pena.
O CP, em seu art. 20, §1º, preceitua: “é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo”.
Da leitura do dispositivo conclui-se que a teoria adotada pelo nosso CP foi a Teoria Limitada da Culpabilidade, sendo o erro que incide sobra as Discriminantes Putativas Fáticas erro de tipo: exclui o dolo, por conseguinte, se invencível, a tipicidade; ou, de outro lado, se o erro for vencível, há a possibilidade de punição por crime culposo.
É, pois, um erro sui generis na concepção de Luiz Flávio Gomes e de Cezar Bitencourt, pois para os autores seria um misto de erro de proibição com erro de tipo. Assim sendo, deveria ser tratado em dispositivo autônomo.
A noção de culpa imprópria vem com a teoria causalista (Teoria esta que vigorava no CP de 1940) em explicar este erro. Vejamos: se o pai atira no próprio filho pensando tratar-se de um ladrão, atua imaginando que se encontra albergado pela legítima defesa. Para Hungria “o pai” havia atuado com culpa, pois o dolo era a vontade de praticar um crime e, “in casu”, o pai evidentemente não queria matar o próprio filho; porém, como não se admite tentativa de crime culposo, seria uma culpa “sui generis”, denominada de imprópria.
Não obstante, com o finalismo, e já afirmamos por diversas vezes neste ensaio, o dolo deixou de ser normativo e passou a ser natural, não mais se exigindo a consciência da ilicitude, mas tão somente a consciência e vontade de realização do comportamento típico, o que se amolda perfeitamente ao exemplo acima. Nesta hipóteses, o agente aprecia mal as circunstâncias, atua finalisticamente para a pratica do ato, portanto, é um crime doloso, mas a lei, por questões de política criminal, pune como crime culposo (chamada culpa imprópria ou por equiparação), modalidade tão excepcional, que fugindo de toda regra, admite até a tentativa.
Não obstante todas as afirmações tecidas acima acredito que, em verdade, não há nas Discriminantes Putativas Fáticas um verdadeiro crime doloso, isso por força da Teoria da Congruência, porém, por não ser o escopo do presente trabalho, nos reportamos à opinião supra descrita. Em outra oportunidade, será desenvolvido um trabalho exclusivo sobre a natureza do erro que recai sobre as Discriminantes Putativas Fáticas.