Feuerbach. Oposição das Concepções Materialista e Idealista
(Capitulo Primeiro de A Ideologia Alemã)
A primeira forma da propriedade é, tanto no mundo antigo como na Idade Média, a propriedade tribal, condicionada entre os Romanos principalmente pela guerra, entre os Germanos pela criação de gado. Entre os povos antigos, porque numa cidade vivem juntas várias tribos, a propriedade tribal surge como propriedade do Estado, e o direito do indivíduo a ela como mera Possessio a qual, no entanto, como a propriedade tribal em geral, se confina apenas à propriedade fundiária. A verdadeira propriedade privada começa, entre os antigos como entre os povos modernos, com a propriedade móvel. (Escravatura e comunidade) (dominium ex jure Quiritum). Entre os povos que provêm da Idade Média, a propriedade tribal desenvolve-se, através de várias etapas — propriedade fundiária feudal, propriedade móvel corporativa, capital manufactureiro — até ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e pela concorrência universal, até à propriedade privada pura, que deixou para trás toda a aparência de uma comunidade e excluiu toda a intervenção do Estado sobre o desenvolvimento da propriedade. A esta propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno, o qual, gradualmente, por meio dos impostos, foi adquirido pelos proprietários privados e, por meio das dívidas públicas, ficou completamente à mercê destes, e cuja existência, nas subidas e quedas dos papéis do Estado na Bolsa, ficou totalmente dependente do crédito comercial que os proprietários privados, os burgueses, lhe concedem. Porque é uma classe, e não já um estado [ou ordem social], a burguesia é obrigada, desde logo, a organizar-se nacionalmente, e não já localmente, e a dar ao seu interesse médio uma forma geral. Pela emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o Estado adquiriu uma existência particular a par, e fora, da sociedade civil; mas ele nada mais é do que a forma de organização que os burgueses se dão, tanto externa como internamente, para garantia mútua da sua propriedade e dos seus interesses. A autonomia do Estado ocorre, hoje em dia, apenas já em países em que os estados [ou ordens sociais], não se desenvolveram completamente em classes, em que os estados [ou ordens sociais], eliminados nos países mais adiantados, ainda desempenham um certo papel, e ainda existe uma mistura, países nos quais, por isso, nenhuma parte da população consegue o domínio sobre as restantes. É este o caso nomeadamente na Alemanha. O exemplo mais acabado do Estado moderno é a América do Norte . Os escritores franceses, ingleses e americanos mais recentes manifestam todos a opinião de que o Estado só existe por causa da propriedade privada, pelo que isto passou também à consciência geral.
Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe dominante fazem valer os seus interesses comuns e se condensa toda a sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições comuns são mediadas pelo Estado, adquirem uma forma política. Daí a ilusão de que a lei assentaria na vontade, e para mais na vontade dissociada da sua base real, na vontade livre. Do mesmo modo o direito é, por seu turno, reduzido à lei.
O direito privado desenvolve-se, simultaneamente com a propriedade privada, a partir da dissolução da comunidade natural. Entre os Romanos, o desenvolvimento da propriedade privada e do direito privado não teve consequências industriais e comerciais posteriores, porque todo o seu modo de produção permaneceu o mesmo. Entre os povos modernos, onde a comunidade feudal foi dissolvida pela indústria e pelo comércio, com o aparecimento da propriedade privada e do direito privado teve início numa nova fase, capaz de desenvolvimento posterior. Logo a primeira cidade que na Idade Média realizou um extenso comércio marítimo, Amalfi, formou também o direito marítima. Assim que, primeiro na Itália e mais tarde noutros países, a indústria e o comércio deram novo desenvolvimento à propriedade privada, foi logo retomado e elevado a autoridade o direito privado romano, que já estava desenvolvido. Quando, mais tarde, a burguesia tinha alcançado tanto poder que os príncipes fizeram seus os interesses dela, para derrubarem, por meio da burguesia, a nobreza feudal, começou em todos os países — em França no século XVI — o verdadeiro desenvolvimento do direito, que em todos os países , à excepção da Inglaterra, se processou com base no código romano. Também em Inglaterra tiveram de ser introduzidos princípios do direito romano para um maior desenvolvimento do direito privado (especialmente no caso da propriedade móvel). (Não esquecer que o direito, como a religião, não tem uma história própria.)
No direito privado, as relações de propriedade vigentes são expressas como resultado da vontade geral. O próprio jus utendi et abutendi exprime, por um lado, o facto de que a propriedade se tornou completamente independente da comunidade, e, por outro lado, a ilusão de que a própria propriedade privada assentaria na mera vontade privada, na disposição arbitrária da coisa. Na prática, o abuti( tem barreiras económicas muito determinadas para o proprietário privado, se este não quiser ver a sua propriedade e, como ela, o seu jus abutendi passar para outras mãos, porque a verdade é que a coisa, considerada meramente em relação com a sua vontade, não é coisa nenhuma, mas só se torna uma coisa, propriedade real, no intercâmbio, e independentemente do direito (uma relação a que os filósofos chamam uma ideia). Esta ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, conduz necessariamente, no desenvolvimento posterior das relações de propriedade, a que alguém possa ter título jurídico a alguma coisa sem ter realmente a coisa. Se, por exemplo, é eliminada pela concorrência a renda de uma parcela de terra, o proprietário desta tem título jurídico àquela, juntamente com o jus utendi et abutendi. Mas com eles nada pode fazer, como proprietário fundiário nada possui se, por outro lado, não possuir capital suficiente para cultivar o seu solo. Pela mesma ilusão dos juristas se explica que para eles, e para todos os códigos em geral, seja acidental que indivíduos entrem em relações entre si, por exemplo, contratos, e que para eles estas relações sejam daquelas em que se [pode] entrar ou não entrar, conforme se queira, e cujo conteúdo [ass]enta completamente na [vontade] livre dos contraentes.
Todas as vezes que, pelo desenvolvi[mento] da indústria e do comércio, se formaram novas formas de intercâmbio, por exemplo, companhias de seguros e outras, o direito foi sempre obrigado a incluí-las entre os modos de aquisição de propriedade.
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