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sábado, 12 de janeiro de 2013

ACUSAÇÃO

Saiu na Folha de 4/8/11:
A investigação sobre a morte do administrador de empresas Vitor Gurman, 24, se transformou numa guerra de versões de testemunhas.
Pessoas ouvidas pela polícia têm apresentado relatos conflitantes a respeito de quem dirigia o Land Rover que o atropelou no dia 23, na Vila Madalena, bairro da zona oeste de São Paulo.
Estavam no jipe a nutricionista Gabriella Guerrero Pereira, 28, e o engenheiro Roberto de Souza Lima, 34 (…)
Ontem, mais testemunhas falaram à polícia sobre o acidente da rua Natingui.
Uma delas confirmou a versão segundo a qual Gabriella estava ao volante.
Outras duas, no entanto, disseram que o motorista era o seu namorado. Essas testemunhas participaram de uma acareação e voltaram atrás em suas versões.
Uma quarta testemunha ouvida ontem disse que estava de moto quando cruzou com o jipe pouco antes do acidente. Ela afirma ter visto ao volante um homem pardo e sem barba. Lima tem pele clara e barba (…)
O advogado da família Gurman, Alexandre Venturini, afirmou ontem que seus clientes estão interessados apenas em esclarecer o que ocorreu naquela noite

Para a acusação, pior do que não ter nenhuma testemunha é ter várias testemunhas que se contradizem. Já para a defesa, interessa ter testemunhas que se contradizem. Quanto mais elas se contradisserem, mais fácil é a absolvição do(s) suspeito(s). Isso porque cabe à acusação provar que o acusado é culpado. À defesa, basta criar a dúvida. As pessoas quase sempre se esquecem disso: a defesa não precisa provar que seu cliente é inocente. Ele e todos nós já somos inocente até que se prove o contrário. Para a defesa, basta criar dúvidas no argumento da acusação. E poucas coisas são melhores para a defesa do que ter testemunhas que se contradizem, enchendo a cabeça dos jurados e do juiz de dúvidas sobre a tese defendida pela acusação.
Em teoria, as testemunhas são imparciais. Elas estão lá para relatarem o que viram e não para estarem do lado dessa ou daquela pessoa. Ainda que elas sejam chamadas de ‘testemunhas de acusação’ e ‘testemunhas de defesa’, isso é só porque quem pede que elas estejam presentes é a acusação e a defesa. Mas não quer dizer que elas possam mentir em favor dessa ou daquela parte. Se mentirem, são processadas por falso testemunho (que em filme americano é chamado de perjúrio).
No caso da matéria acima, ambas as pessoas que estavam no carro têm a mesma versão: ela estava dirigindo. As testemunhas é que têm versões diferentes. Algumas dizem que ela dirigia, outras dizem que ele dirigia.
Ora, então não seria mais simples se a justiça acreditasse na versão de quem estava dentro do carro e aceitasse que era ela quem estava dirigindo? Afinal, ela confessou, e a confissão é a rainha das provas, não?
Não! Isso é mais um dos mitos do direito. E o caso acima é um exemplo perfeito para mostrar como confissões podem não ser verdadeiras. (Repito: podem. Ninguém – exceto os dois – sabe quem estava dirigindo).
Quem confessou pode estar mentindo. Mães confessam para ‘livrar a cara’ dos filhos. Presos confessam para, como dizem os policiais, ‘comprar cadeia (ou ‘cana’)’, que nada mais é do confessar um crime que não cometeu para conseguir alguma vantagem entre os outros presos ou simplesmente evitar ser morto por outro preso (ou polícia), que foi de fato quem cometeu o crime. Algumas pessoas confessam porque estão loucas ou porque ‘acham’ que cometeram um delito (o exemplo das testemunhas na matéria acima mostra como é simples as pessoas interpretarem a realidade de forma errada). O caso da namorada acima pode ser um caso em que alguém confessa para ‘livrar a cara’ de outra pessoa. Afinal, se era ele quem estava dirigindo, ele cometeu um crime muito grave, pois estava embriagado. Mas se era ela, ela pode alegar que apenas perdeu o controle do veículo enquanto o conduzia sobriamente. Sua pena seria muito menor.
Mas no caso da matéria acima a questão é ainda mais complicado porque quem for julgar precisa estar convencido sobre a identidade de quem estava dirigindo. Afinal, se os jurados (ou o juiz, se não for parar no tribunal do júri) tiver dúvida (ainda que pequena) sobre quem de fato estava dirigindo, o acusado será absolvido. Isso porque, na dúvida, é melhor absolver um culpado do que condenar um inocente. É o que em juridiquês chamamos de in dubio pro reo (‘na dúvida, que se decida sempre a favor do réu’).

E uma vez absolvido em um processo válido, quem foi absolvido não poderá ser julgado novamente. Por isso é essencial achar o culpado ‘de primeira’.

E qual é a punição do passageiro do carro? Independente se o passageiro estava bêbado ou sóbrio, ele(a) não cometeu nenhum crime (exceto se incentivou ou agiu de forma a causar o acidente). Do ponto de vista jurídico, o passageiro é uma segunda vítima do motorista, podendo, inclusive, processar o motorista pelos danos causados no acidente. E o Ministério Público poderá processar o motorista não só pela morte do pedestre, mas também pelas lesões sofridas pelo passageiro. Em outras palavras, embora ambos estivessem dentro do carro no momento do acidente, do ponto de vista jurídico eles estão, em teoria, de lados opostos: um causou dano material e moral, além de ter cometido um crime. O outro, sofreu dano material e moral, além de ter sido vítima de um crime.

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