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quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Modernidade Líquida, de Zygmunt Bauman

Autor: Luciano Vieira Francisco

Propondo como tema uma nova visão sobre a modernidade, voltada à fluidez das relações, no individualismo pregando o dinamismo, Zygmunt Bauman norteia seu “Modernidade líquida”, expressão síntese desta nova idéia.

Inicia seu estudo discutindo a idéia de liquidez e fluidez. Por se tratar de um conceito voltado à mudança de formas para acomodação nos mais diversos encaixes, é inevitável a analogia à nossa atual e imediatista sociedade pois “assim, para eles [nossos conviventes], o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas ‘por um momento’ [grifo do autor]” (BAUMAN, 2001, p. 8). Desta forma, Bauman afirma que sólido é aquilo que para outros pensadores, como Weber e Marx, soa como algo retrógrado, ultrapassado, rígido, duradouro e previsível em suas formas e possibilidades, em muitos de seus aspectos (econômico, social, político etc.).


Frente a isso, um outro termo usado pelo autor – derretimento – será empregado para designar a desintegração desse discurso sólido e fixo já em vias de enferrujamento dos compostos institucionalizados. Agora, nessa nova modernidade maleável, para Bauman o que vigora é a ascensão de um objetivo individual, em declínio dessas instituições, analogamente, sólidas e tradicionalistas. Essa mudança de parâmetros teria provocado, então, uma quebra dos moldes, as molduras de classe, etnia, linhagem etc., alguns dos já históricos pontos de orientação. Esses padrões já não estigmatizam o indivíduo, pelo contrário, seria do indivíduo que partiria, se chocando com os multifacetados novos padrões, cada vez mais micros, de convívio social e, por isso, com sucinta fluidez, normas que vão e estão se maleando em curtíssimo espaço de tempo.

A voraz diminuição dos espaços em locomoção física ou sensorial é um dos mais claros exemplos do derretimento desses padrões que eram vigentes. Atualmente, computadores e telefonia, ambos móveis e portáteis, levam consigo a ordem e agenda de qualquer lugar, em ações que podem criar reações transformadoras (caóticas) de qualquer para diversas posições do globo.

Essa mutabilidade de relações também promove o desprendimento, no sentido afetivo e de posse eterna dos bens lucrativos, bastando dizer que hoje devem sim ser de favorável retorno financeiro, mas já tendo noção que são altamente perecíveis e, decorrente a isto, devem ser rapidamente rotacionados.

Nessa aparente e sedutora emancipação, Bauman questiona a liberdade como real objetivo almejado, cravando o leitor com uma revelação formulada como indagação: “A libertação é uma bênção ou uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção temida como maldição?” (BAUMAN, 2001, p. 26). Embasado por seu estudo, ele mesmo responde: “A verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir” (BAUMAN, 2001, p. 26).

Desse modo, as idéias tradicionais de revolução e mudança nesta sociedade já estão póstumas porque os reacionários já não estão mais conosco, o mundo fluído não permite a “tradicionalidade ideológica” com suas táticas pré-determinadas e solidificadas. Mas esse não é um comportamento escancarado, na verdade, o maior problema da atual sociedade está justamente nesta ausência de se auto-questionar e se posicionar, ela prefere não tentar se reconhecer e sente-se absolvida a cada justificativa em seu senso comum e/ou acadêmico, o que causa certa intransigência a novas questões, principalmente se estas tiverem força suficiente para por em juízo o modelo vigente. Importante lembrar que não se trata de um embrutecimento, muito pelo contrário, esta sociedade é tão pitoresca quanto era a caracterização da sociedade do início do século XX, todavia, é evolutiva a seu modo, é de forma voraz e a passos cada vez mais largos, velozes, opressivos e normalmente destrutivos para a desmontagem, remodelagem e reconhecimento de crenças.

E o individualismo é papel preponderante aqui, pois se trata da empregabilidade de funções mutáveis, fluídas no sentido de liberdade de roupagens, diferente do conceito libertário do início do século passado. Esses indivíduos, controversamente, não têm controle sobre seus destinos e decisões e, o que é pior, nem podem culpar um terceiro pelo seu grilhão imaginativo, pois a pseudo-liberdade é uma ilusão criada como possibilidade de fuga, da incapacidade deste, que não ousa extrapolar os paradigmas. Assim, até o espaço público têm-se tornado lugar de problemas privados, socialmente trata-se de uma involução ímpar pelo fato de que:

“O indivíduo de jure [falso] não pode se tornar indivíduo de facto sem antes tornar-se cidadão. Não há indivíduos autônomos sem uma sociedade autônoma, e a autonomia da sociedade requer uma auto-constituição deliberada e perpétua, algo que só pode ser uma realização compartilhada de seus membros” (BAUMAN, 2001, p. 50).

Já que era (e assim deveria ser, segundo o autor) a sociedade como elo entre os dois lados deste abismo da individualidade (a real e a almejada), como na Antiga Atenas com suas ágoras, não acontece atualmente porque os ensejos mesmo que parecidos são almejados em um meio incongruente, trocando palavras, o que se passa atualmente é uma condição inédita: a esfera pública, outrora laica em espaço e impositiva em dogmas, hoje é a remota esperança contra a autonomia de jure. É através do tornar público que essa liberdade poderia ser de facto, ou seja, tal qual o sentido completo e genuíno do termo, o que é hoje, segundo Bauman, de pouca probabilidade. A dimensão pública atualmente tem tentado se livrar do poder que havia já há muito tempo gerenciado, enquanto o privado se apossa e o desfigura não para extinguí-lo, mas para dar forma a seus interesses momentâneos e ininterruptos.

Essa desordem (no sentido de não se saber o que vem a seguir) vitalícia de seus viventes se difere muito da bula fordista, onde o roteiro funcional era, via de regra, por toda a vida e estático. Novamente entra em cena o novo sentido de ordem, o da fluidez das águas correntes do capital e de seus nadadores funcionais, entretanto isso não significa uma evolução, pois não é a maioria que rege ou não se afoga nesse deslocamento, ainda mais quando o curso deste rio não é calmo nem pré-determinado.

Conta-nos que essa (falta de) consciência sobre a ininterrupção faz do sujeito um ser inacabado, seja ele socialmente visto como um derrotado ou bem-aventurado. Isto fica claro nas extintas figuras autoritárias rígidas de um capitalismo pesado que deu lugar a um número maior e, por isso, uma disputa mais acirrada pelo poder, onde os vencedores governam por tempos e espaços muito mais reduzidos que outrora. Atuam como conselheiros pelo que por eles é almejado, prometido, pregado e feito. Pela resolução de problemas cada vez mais pessoais e não pelas atitudes tomadas pelo bem (ou mal) do grande grupo sem rosto que é a simbolização da coletividade.

E aí protagoniza o mais evidente e nocivo comportamento desta sociedade: o consumo. Propagou-se um comportamento geral de comprar, não apenas produtos e serviços, mas o ato de aquisição fica também evidenciado na busca e anexação de personas do indivíduo e as pessoas que com este se relacionam, seja o empregado, empregador ou até mesmo o par amoroso. Logo, esta sociedade é vista e se porta como consumidora, e não mais produtora, não existindo um limite para a busca da faustosidade momentânea, desde que fuja (sendo inexoravelmente capturada) da regra da padronização visual e comportamental, para que os itens que simbolizam a ostentação agora em pouco, pouquíssimo tempo, se tornem itens de necessidade as próprias pessoas que, cada vez mais, deixam de adquirir bens para se entregar, viver para eles.

As relações interpessoais, segundo Bauman, suspiram um saudosismo descaracterizado do pré-conceito do termo, ele não se dá pelas inter-relações, mas por uma busca da eficácia de mútua vigilância, de saber quem é você no limitado universo de sua vizinhança, ressalta-se, homogênea. Criando-se uma situação dúbia, pois ao mesmo tempo em que se investe em proteção, adicionando formas de expurgar esses novos vilões, há o enclaustramento, cada vez mais reducionista, de seus investidores em uma realidade-cela.

Acabam-se os contatos? Você deve estar se perguntando, Bauman afirma que estas relações foram removidas das situações de casualidade e desnutridas de qualquer interação afetiva, já que nunca foi tão fácil se relacionar com outrem sem ter o mínimo de contato com estes, com discursos preestabelecidos (de aquisição e não de interação) e em lugares já determinados, na verdade, denominados pelo autor de “não-lugares”. Os “não-lugares” são, normalmente, espaços que se presta a exercitar a sua indiferença com o ambiente que o cerca. A não sociabilidade e civilidade desses espaços não permitem estada por estendido limite de tempo e nem sensação de se estar ali. Transportes públicos, quartos de hotel, fast-foods, etc. se apresentam como lugares domiciliares, mas sem as liberdades do lar. Assim como lugares que não interessam, que não valem menção de memória, como a miserabilidade de favelas ou a morbidez de cemitérios, estes espaços não recebem atenção destas pessoas, mesmo que elas, algumas diariamente, façam tal trajeto, até porque:

“O vazio do lugar está no olho de quem vê e nas pernas ou rodas de quem anda. Vazios são os lugares em que não se entra e onde se sentiria perdido e vulnerável, surpreendido e um tanto atemorizado pela presença de humanos” (BAUMAN, 2001, p. 122)

As regras são claras: conversa-se, negocia-se, cumprimenta-se cordialmente, mas sempre evitando maior contato, como dogmatiza essa modernidade leve e solta que assim desfigura a, então, relação congruente da idéia de espaço-tempo de outrora, como no tempo em que a velocidade dependia do esforço humano ou animal, hoje as extensões fisiológicas, que abocanham espaços cada vez maiores em cada vez menos tempo, estendem distâncias, encurtam o tempo, expandem a expectativa de vida, mas tornam todo ato desse tempo de locomoção e vivência numa ação instantânea, imediatista, onde a exaustão e desaparecimento do interesse também vem neste bojo a reboque.

Toda produção e trabalho, cada vez mais leves, se tornam atitudes presenteistas. Até a antiga e positivista fé no progresso é agora mais evidente pela crença e apego ao presente para a formação de um futuro promissor ou a ausência de um messias a ditar explicitamente seu conjunto de mandamentos. Essa instabilidade, onde o abismo de três vertes: entre o ideal e o real dos planos de cada um e do senso coletivo, nunca foi tão profundo, pois se o trabalho aqui surge como principal esperança do controle do presente para, conseguinte, tentativa de controle do futuro, da manutenção da ordem de controle deste por vir caótico, há aí a promoção, mesmo que involuntária, da exorcização da experiência e das decisões cometidas por outros sistemas, segundo seus indiferentes fantasmas antigos que devem ser sepultados. Mas estas pessoas líquidas ignoram os novos espectros e seus inéditos assombros (da instabilidade em curto prazo, do mal-estar social, da impessoalidade atual, etc.) que, não desses túmulos, mas surgem na escuridão das próprias sombras destes críticos-coveiros das experiências passadas.

E, diferente da visão em pedaços, peças desconexas, remendos provenientes da produção mecanicista de montagem, da política estatal do bem-estar como podador das anomalias e apostas de longo prazo, impera na modernidade líquida o recurso da subjetividade, das idéias ocupando o lugar das coisas materiais, afinal, não há nada mais leve e versátil que uma idéia a tiracolo. E neste contexto os canais de comunicação se intensificam e ganham músculos, o “noticiário” se apresenta como a transmissão da realidade fiel, sem partidarismo ou distorção, haja vista que o tempo, bem maior, é escasso e esse enxugue se torna supra-necessário além do fato de que uma vez figurado como prólogo da história a ser contada, o presente é a promessa de um futuro promissor, por isso é encarado como deficitário e incompleto.

Deficitário e, ao mesmo tempo, dinâmico e presente, precisa sê-lo para atingir a plenitude futura, esse ritmo não permite o exercício, por exemplo, de reflexão das ações individuais ou coletivas, não há tempo a ser “perdido”:

“Os mecânicos de automóveis de hoje não são treinados para consertar motores quebrados ou danificados, mas apenas para retirar e jogar fora as peças usadas ou defeituosas e substituí-las por outras novas e seladas, diretamente da prateleira. Eles não têm a menor idéia da estrutura interna das ‘peças sobressalentes’ (uma expressão que diz tudo), do modo misterioso como funcionam; não consideram esse entendimento e habilidade que o acompanha como sua responsabilidade ou como parte de seu campo de competência. Como na oficina mecânica, assim também na vida em geral: cada ‘peça’ é ‘sobressalente’ e substituível, e assim deve ser. Por que gastar tempo com consertos que consomem trabalho, se não é preciso mais que alguns momentos para jogar fora a peça danificada e colocar outra em seu lugar? (BAUMAN, 2001, p. 186)

Desse modo, a durabilidade é precária ou inexistente nessa realidade. Outra marca desse movimento (contínuo) é a extrema falta de confiança, o medo da perda brusca do que já se conseguiu e/ou do que se está galgando. Essa desconfiança não é pecado, pelo Evangelho comunitário (termo de Bauman) dessa sociedade o dogma de convivência enaltece um discurso/sentimento patriota e suas “virtudes”, de benevolência e tolerância para com o próximo (a bem da verdade, visto como competidor) e sua carga cultural multifacetada enquanto repudia o sentimento nacionalista e sua fama de agressão e ódio aos outros, os mesmo competidores vistos como responsáveis pelos infortúnios não só da nação, da coletividade, mas como tramitáveis obstáculos de objetivos pessoais.

É muito claro ao autor que esse discurso patriótico é tão cheio quanto um balão de ar já que, segundo sua interpretação, dada a necessidade dessas pessoas escolherem um posicionamento entre a liberdade (no sentido genuíno do termo) e a segurança, a sociedade líquida optou por unanimidade pela segurança. Unanimidade porque a uniformidade já a muito tempo não está mais nos produtos ou serviços, muito menos nos métodos de produção ou divulgação, essa padronização que Ford implantou nas peças, as colocando em linha de produção já se proliferou para o comportamento humano (?) dessa sociedade, como um chip implantado em cada um desses que completam, mas não formam essa sociedade fluida, em seus trejeitos vivenciais, onde todos miram num objetivo comum sem nenhum ineditismo, como em um espetáculo que infinitamente (o infinito do agora) se mantém em cartaz.

E nessa linha de raciocínio, meio que trágica Zygmunt Bauman conclui sua obra dando a essa sociedade simbiótica um tom circense, posta ao público e cheia de vaidades, onde esses “atores sem papel” precisam de circunstâncias momentâneas de encenação para que não corram o risco de uma possível união afetiva. Não criam nada mais que a excitação do desempenho ou que se prolongue mais do que a finitude do cheiro das coisas novas, dos produtos consumidos, relacionando-se de forma incipiente com suas aquisições de plástico, metal, high-tech ou mesmo as de carne, osso e sangue que trazem uma alma como acessório de fábrica para serem (apenas) degustados em situações carnavalescas, na festa presenteista da carnalidade:

“’Comunidades de carnaval’ parece ser outro nome adequado para as comunidades em discussão. Tais comunidades, afinal, dão um alívio temporário às agonias de solitárias lutas cotidianas, à cansativa condição de indivíduos de jure persuadidos ou forçados a puxar a si mesmos pelos próprios cabelos. Comunidades explosivas são eventos que quebram a monotonia da solidão, cotidiana, e como todos os eventos de carnaval liberam a pressão e permitem que os foliões suportem melhor a rotina que devem retornar no momento em que a brincadeira terminar. E, como a filosofia, nas melancólicas meditações de Wittgenstein, ‘deixam tudo como estava’ (sem contar os feridos e as cicatrizes morais dos que escaparam ao destino de ‘baixas marginais’)” (BAUMAN, 2001, p. 229)

Moral, Direito e Política: Sobre a Teoria do Discurso de Habermas

 Autor: Luiz Bernardo Leite Araujo

Teoria do Discurso e Pensamento Pós-metafísico

 Estou esgaravatando, um pouco aqui, um pouco acolá, à procura dos vestígios de uma razão que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade. Estas palavras de Jürgen Habermas, extraídas de uma entrevista concedida há cerca de dez anos atrás, assinalam uma perspectiva geral de pensamento que o autor trata de desenvolver em problemas particulares com os quais depara, seguindo assim um método de pesquisa que, sem perder a visão de conjunto própria do saber filosófico, resiste ao monismo unificador das teorias tradicionais. As contribuições de Habermas nos campos da moral, do direito e da política ilustram sobremaneira tal perspectiva, tanto na forma de apresentação quanto nos resultados da investigação, razão pela qual uma apresentação da teoria discursiva torna indispensável a mirada retrospectiva sobre alguns elementos fundamentais do pensamento habermasiano, elaborados ao longo de uma trajetória acadêmica já cinqüentenária, cujo eixo norteador reside no conceito de agir comunicativo. A Teoria do Discurso deve ser considerada, em primeiro lugar, através de uma guinada lingüística ou pragmático-formal que Habermas assume em seu projeto teórico, desde sua incipiente formulação no quadro conceitual  traçado com base na releitura das categorias hegelianas do trabalho e da interação até seu contorno definitivo nos temas incorporados na obra magna3 a partir de quatro teorias complementares: (i) a teoria do agir comunicativo, que tece um conceito constitutivo de ação social orientada à intercompreensão; (ii) a teoria da sociedade, que desenvolve um conceito de sociedade integrando a teoria dos sistemas com a teoria da ação, de modo a distinguir e conjugar a esfera sistêmica e a esfera do mundo vivido; (iii) a teoria da racionalidade, que elabora uma noção mais englobante de razão, com a conseqüente superação da perspectiva monológica da filosofia do sujeito; (iv) a teoria da modernidade, que propõe uma nova leitura da dialética da racionalização social, pela qual se possa discernir os fenômenos patológicos a fim de contribuir para um redirecionamento, em vez de um mero abandono, do projeto da modernidade. No amplo e sinuoso percurso de constituição da teoria discursiva, a noção de agir comunicativo representa seu ponto de unidade e seu fio de continuidade, pois é ela que permite a Habermas elaborar um conceito formal de racionalidade apropriado ao horizonte da modernidade e fundamentar uma concepção de sociedade baseada no conceito de razão mencionado acima pelo autor.

Além desse giro lingüístico, três outros motivos que caracterizam o que Habermas chama de pensamento pós-metafísico emigram para sua própria teoria: a racionalidade procedimental, o modo de situar a razão e a deflação do extraordinário no seio da filosofia4. De fato, Habermas concebe a teoria do agir comunicativo baseada numa racionalidade de procedimentos, prolongando a linha do novo tipo de racionalidade metódica que se impõe desde o final do século XVII e início do século XVIII, que significa, no campo do saber teórico, o falibilismo da ciência, e no campo do saber prático, o formalismo da moral e do direito. .Passa a valer como racional., afirma o autor, .não mais a ordem das coisas encontrada no próprio mundo ou concebida pelo sujeito, nem aquela surgida do processo de formação do espírito, mas somente a solução de problemas que aparecem no momento em que se manipula a realidade de modo metodicamente correto. A racionalidade do procedimento não está mais em condições de garantir uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos.5. Assim, Habermas pretende colocar a filosofia numa divisão de trabalho junto às outras ciências, isto é, na posição de participante num processo de cooperação. Além disso, na esteira de uma crítica ao saber absoluto da metafísica, a teoria habermasiana busca destranscendentalizar a razão, a fim de trazê-la ao chão do mundo vivido e às condições concretas e contingentes da prática, sem perder, entretanto, o horizonte das idealizações inevitáveis e necessárias que se abre em cada ato de fala, realizado argumentativamente. Finalmente, será crucial a explosão do clássico primado da teoria frente à prática. Esse processo é acolhido dentro da teoria do agir comunicativo não nos termos de uma liquidação da pretensão racional do pensamento filosófico e sim de um encolhimento dos seus papéis tradicionais. À filosofia não cabe mais o papel de indicador de lugar relativo às ciências e nem o de juiz frente à cultura, mas ela pode e deve assumir o posto de cooperadora das ciências e de intérprete, trazendo para o horizonte do mundo vivido, realimentando-o através da linguagem argumentativa da crítica, as estruturas de pensamento envolvidas num ambiente cultural cada vez mais especializado6. É, portanto, no âmbito de um universo pós-metafísico de pensamento que se deve situar os temas fundamentais da Teoria do Discurso. Estes, por seu turno, podem ser vislumbrados através de uma conexão entre as teorias da ação e da sociedade, por um lado, e entre as teorias da racionalidade e da modernidade, por outro. É o que mostraremos a seguir numa mirada retrospectiva. Num segundo momento, apresentaremos os aspectos centrais da teoria discursiva da moral, do direito e da política.

II- Os fundamentos de uma teoria do agir comunicativo

De início, Habermas propõe sua teoria da ação a partir de uma rejeição da versão oficial. da racionalidade weberiana - cuja tipologia da ação repousa numa compreensão  monológica (sujeito solitário) e num modelo teleológico (ação relativa a fins) - e de uma ampliação da versão .oficiosa. - cuja tipologia da ação tem por base uma compreensão dialógica (relação entre ao menos dois sujeitos capazes de falar e de agir) e um modelo de interação social (agir comunicativo). Destarte, o autor reformula o conceito weberiano de racionalidade no plano de uma teoria da ação que se vincula à tradição da filosofia pós-wittgensteiniana da linguagem, sobretudo à teoria dos atos de fala7. Segundo Habermas, essa teoria permite construir uma espécie de síntese entre a ação e a linguagem, pela qual fica evidente que apenas as ações lingüísticas às quais o falante vincula uma pretensão de validade criticável são capazes de levar o ouvinte a aceitar a oferta contida num ato de fala, podendo assim se tornar eficazes como mecanismo de coordenação das ações. Contudo, essa síntese entre ação e linguagem não significa uma identificação entre o .falar. e o .agir.. Ao contrário. A teoria dos atos de fala possibilita precisamente distinguir as .ações lingüísticas. das .ações. no sentido estrito do termo . O aspecto fundamental é a distinção entre atos perlocucionários e atos ilocucionários. Enquanto para os atos ilocucionários o que é constitutivo é o significado do enunciado, para os atos perlocucionários o que é capital é a intenção do agente. É apenas com base nos atos ilocucionários que Habermas considera possível elucidar os conceitos de .intercompreensão. e de .agir orientado ao entendimento mútuo., pois é quando o locutor atinge seu objetivo ilocucionário que tem êxito a tentativa de reconhecimento intersubjetivo embutida em todo ato de fala. No cerne da teoria habermasiana da ação está a distinção entre a ação .orientada ao sucesso. (erfolgsorientiert) e a açãoorientada à intercompreensão. (verständigungsorientiert) - uma renovada configuração daquele binômio .trabalho. e .interação. extraído da filosofia do espírito do jovem Hegel. Levando-se também em conta as situações da ação, ou seja, sociais e não-sociais, podemos compreender a importância concedida por Habermas à noção de agir comunicativo: trata-se do único tipo de acão social orientada à intercompreensão.

O conceito de .agir comunicativo., diz Habermas, .que leva em conta o entendimento lingüístico como mecanismo de coordenação da ação, faz com que as suposições contrafactuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância imediata para a construção e a manutenção de ordens sociais: pois estas mantém-se no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas. Isso significa que a tensão entre facticidade e validade, embutida na linguagem e no uso da linguagem, retorna ao modo de integração de indivíduos socializados - ao menos de indivíduos socializados comunicativamente - devendo ser trabalhada pelos participantes. A citação, extraída da principal obra de Habermas em matéria de filosofia política e filosofia do direito, permite-nos perceber a conexão entre as teorias da ação e da sociedade. Ele sabe que a linguagem, enquanto veículo primário de intercompreensão, se sobrecarrega de tarefas no âmbito das sociedades modernas desencantadas, resultado da mudança progressiva do agir ritual pelo agir comunicativo nas funções de reprodução social. Habermas propõe, então, uma nova e complexa conexão dos conceitos básicos da teoria da ação com os da teoria dos sistemas. A impotência do agir comunicativo diante da complexidade do mundo moderno obriga-o a integrar a perspectiva sistêmica na teoria da sociedade, tendo em conta dois tipos de coordenação das ações: a que é obtida por intermédio do consenso dos participantes (perspectiva do mundo vivido) e a que é realizada pela via funcional dos observadores (ótica do sistema). A distinção entre .sistema., por um lado, e .mundo vivido., por outro, possibilita especificar duas esferas de reprodução social - material e simbólica -, com funções diferentes no plano da integração - sistêmica, de um lado, social, de outro -, associadas a seus respectivos contextos de ação, isto é: estratégica e comunicativa. Habermas integra a teoria do agir com a teoria dos sistemas, evitando uma absorção da primeira pela segunda através de sua noção bipolar de sociedade, pela qual combina as análises hermenêutica e funcionalista. Em Habermas, a teoria da ação tem primazia sobre a teoria sistêmica, pois ele estabelece primeiro os eixos de uma teoria da ação que, como vimos, repousa no conceito de agir comunicativo, para, em seguida, incorporar a perspectiva do sistema, e não o contrário. Nessa linha, o .mundo vivido é um conceito complementar do .agir comunicativo., na medida em que o primeiro representa o background social da ação orientada ao mútuo entendimento e o segundo o medium da reprodução simbólica do mundo da vida. Veremos oportunamente que essas formas distintas, inconfundíveis, de coordenação das ações sociais - estratégica e comunicativa - servem de fundamento para a explicação habermasiana do caráter dual do direito moderno. Por ora, e mantendo-nos ainda no âmbito da reconstrução de seu pensamento, cabe assinalar que é a determinação do mundo vivido, como base para as pretensões de validade, o que revela a existência de um acordo prévio, o qual deve ser restaurado formalmente através da comunicação desobstruída e, no caso das questões práticas, através de um procedimento discursivo que sirva de justificação de normas de ação em geral, fundidas em nossa relação não-problemática com o mundo. Nesse campo de saberes pré- teóricos, que somente se deixa acessar por intermédio da linguagem e que é a base na qual apoiamos nossas pretensões de validade, situa-se o horizonte compartilhado das noções de .verdade. (Wahrheit), de .correção. (Richtigkeit) e de .veracidade. (Wahrhaftifkeit). Resulta daí o resgate habermasiano de uma razão comunicativa incrustada no vínculo instaurado entre os
indivíduos através da linguagem, fruto da mudança do paradigma representado por uma razão centrada no sujeito monológico - inaugurado por Descartes, reiterado na análise transcendental de Kant, prolongado por Husserl e amplamente presente na contemporaneidade - pelo paradigma da intersubjetividade. Neste caso, o privilégio é dado não à mera atitude objetivante do sujeito frente ao mundo como totalidade, mas à atitude performativa adotada pelos participantes de qualquer interação mediada pela linguagem. Tal conceito de razão torna possível uma compreensão descentrada do mundo, que permite a adoção de várias atitudes - objetivante, normativa e expressiva - com relação aos diferentes .mundos. - objetivo, social e subjetivo.

Habermas evidencia o fato de que as três formas de racionalidade - cognitiva, moral e estética -, constitutivas do conceito moderno de razão (referentes às esferas culturais de valor anotadas por Weber e provenientes da arquitetônica kantiana da razão pura), estabilizam-se em processos de aprendizagem permanentes e cumulativos. Porém, a razão comunicativa não deve ser identificada com os tipos constitutivos da razão moderna. Ela funciona, em correta acepção, como sua matriz ou princípio produtivo, enraizada no contexto do mundo vivido ou do agir comunicativo. É precisamente pelo fato de não estar solidificada nas formas objetivas da racionalidade, por seu caráter informal e fluido, em que pese sua expressão originária, que Habermas designa a razão comunicativa como uma razão .tênue. ou .fraca. (schwache Vernunft).

Tal conceito de razão está associado aos processos de entendimento nos quais os participantes desempenham papéis de falantes e ouvintes. Em todas as interações lingüisticamente mediadas os falantes erguem pretensões de validade inerentes a seus atos de fala, relativas aos três setores básicos da realidade: .natureza externa. ou mundo objetivo (como conjunto dos estados de coisas existentes), .sociedade. ou mundo social (como conjunto das relações interpessoais legitimamente reguladas) e, por último, .natureza interna. ou mundo subjetivo (como conjunto das vivências a que todo locutor tem acesso privilegiado). A pressuposição fundamental para uma teoria da racionalidade é que as respectivas pretensões de validade levantadas por atos de fala - constatativos, regulativos e expressivos - podem ser criticadas e fundamentadas. Assim, na prática comunicativa cotidiana, o reconhecimento mútuo se processa com base nas pretensões de validade criticáveis, pelas quais o consenso é visado.
Este é imediato, no caso de um assentimento do auditor à oferta do ato de fala do locutor. No caso de uma rejeição, têm início os discursos argumentativos, que são prolongamentos do agir comunicativo por outros meios, uma espécie de ruptura no curso normal da interação, pelos quais busca-se honrar as pretensões de validade pela força não coerciva do melhor argumento. A intercompreensão, tida por Habermas como um telos da linguagem humana, representa o processo pelo qual se realiza um acordo, na base pressuposta de pretensões de validade mutuamente reconhecidas. Ora, tal acordo significa que os participantes do processo argumentativo aceitam a validade de um saber, vale dizer, sua força de obrigação intersubjetiva.
Neste sentido, Habermas fala em saber compartilhado, quando é constitutivo de um consenso racionalmente motivado., termo que serve para distinguir do mero compromisso e sobretudo de um consenso falacioso.E é precisamente nos pressupostos pragmáticos inerentes à linguagem que está embutida a noção de razão comunicativa, que fixa critérios de racionalidade em função dos procedimentos argumentativos pelos quais resgatam-se as pretensões de validade associadas aos três conceitos formais de mundo. Em suma: a razão comunicativa é um conceito procedimental de racionalidade, que se expressa numa compreensão descentrada de mundo.
Esse descentramento, constitutivo de uma perspectiva que conduz os participantes na fala argumentativa à superação da subjetividade inicial de suas respectivas concepções, revela o fato de que, para Habermas, a noção de razão comunicativa é produto da superação moderna das visões globais de mundo, de caráter religioso ou metafísico, as quais mantinham cingidos os conceitos formais de mundo e suas respectivas pretensões de validade. Não resta dúvida que é o programa desta razão procedimental, diferenciada e pós-convencional, mediadora formal dos aspectos plurais da realidade, que Habermas designa como projeto da modernidade, que ele considera atual e inacabado14. Assim, a idéia central da teoria habermasiana da modernidade é a de que um diagnóstico crítico de nossa época deve colocar em evidência não um excesso mas uma insuficiência de razão15, tratando-se aqui, bem entendido, de uma razão talhada em molde lingüístico, que evita a um só tempo a Cila do absolutismo e a Caribide do relativismo. Em nosso contexto, vale destacar um aspecto essencial das diversas teorias elaboradas em torno do paradigma do agir comunicativo, quer dizer: o vínculo interno, portanto não contingente, entre modernidade e racionalidade. No entender de Habermas, a razão moderna sempre produz alternativas a partir de si mesma, ainda quando se trata de denunciar suas próprias patologias.
Aliás, a questão da autofundamentação, a tarefa imperativa de buscar em si mesma seus fundamentos, longe das sugestões normativas de um passado já superado, tornou-se o problema maior da modernidade. Ora, pela introdução do tema, segundo a via da autocrítica, e pela precisão das regras, de acordo com a dialética do esclarecimento, Hegel inaugurou, segundo Habermas, o discurso crítico da modernidade, propondo uma leitura emblemática de nossa época. Assim sendo, a representação racional, por um lado, e a crítica determinada, por outro, são movimentos indissolúveis da autoconsciência filosófica dos tempos modernos, posta em evidência por Hegel, fraturada por sua herança conservadora e bombardeada em seu núcleo pela tradição oriunda de Nietzsche. Aqueles que prosseguem, de forma crítica, o projeto da modernidade, são confrontados com adversários que possuem em comum tanto a sensação de ruptura com seu horizonte categorial quanto a resolução de desperdir-se dele. Evitando colocar na berlinda o projeto moderno, Habermas, longe da aprovação entusiástica do desenvolvimento pós-iluminista, acredita em sua continuidade, isto é, na releitura atenta de seu sentido interno de caráter universal. Tal projeto da modernidade17, na visão do filósofo alemão, se caracteriza, entre outras coisas, por uma avaliação positiva, ainda que crítica, da racionalidade e de seus progressos, por uma defesa clara da democracia como forma madura de resolução dos conflitos e, finalmente, pela convicção inabalável de que as questões normativas são suscetíveis de discussão argumentativa. Essas características aparecem claramente na maneira como Habermas desenvolve sua contribuição no campo da filosofia prática.

O DIREITO SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DOS SISTEMA DE NIKLAS LUHMANN

Autores: Bruno de Oliveira Moura, Fábio Guedes de Paula Machado,Matheus Almeida Caetano
1. Introdução
Desde a epistemologia funcionalista, trata-se sempre da solução de um problema concreto através da seleção, entre equivalentes funcionais, daquele que desempenha mais satisfatoriamente uma dada função. Assim, o artigo pretende explicar as bases gerais da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann e algumas de suas contribuições para o Direito, já que definir a função deste e de sua dogmática pressuporia a prévia delimitação de um problema a ser tematizado e equacionado como complexidade.
2. Do pensamento sistemático ao pensamento sistêmico
O conceito de sistema não é unívoco, entendido pelo senso comum como um conjunto de elementos relacionados entre si em uma ordem unitária e coerente, onde o todo é mais do que a mera soma das partes. Este é o conceito do paradigma aristotélico de sistema enquanto mecanismo de conhecimento, presente em toda evolução do pensamento ocidental até os dias de hoje.
O movimento de positivação do Direito em códigos legais fez com que a idéia de sistematização ingressasse no campo das discussões jurídicas, tanto no campo legislativo, quanto no campo dogmático: os códigos são tidos como um todo sistematizado de disposições legais sobre determinadas matérias e a ciência jurídica passa a ser compreendida como uma ordenação de conhecimentos ou conceitos acerca de certa disciplina jurídica.
O pensamento sistemático no campo jurídico encontra sua máxima formulação com CANARIS. Ordenação (expressão de um estado de coisas intrínseco e racionalmente apreendido, ou seja, fundado na realidade) e unidade (fator de conexão e recondução do material apreendido a certos princípios fundamentais, capazes de evitar a dispersão de singularidades desconexas), mantidas em uma relação de intercâmbio recíproco, aparecem como os elementos constitutivos do sistema de direito positivo e do sistema dogmático, voltados ambos à realização do valor fundamental da segurança jurídica.
De todas as formas, a dogmática jurídica é definida como um sistema de ordenação conceitual voltada à interpretação das disposições legais, de modo a garantir uma aplicação racional, previsível, segura e harmônica do Direito positivo ao caso concreto. Esta abordagem sistemática pretende produzir algumas vantagens como: (i) facilitar o exame do caso concreto; (ii) proporcionar uma aplicação ao mesmo tempo uniforme (para os mesmos casos) e diferenciada (para supostos diferentes) do Direito; (iii) simplificação e maior manuseabilidade do Direito pelo operador; (iv) oferecer um guia de elaboração e evolução do Direito positivo.
Em meados do século passado, Karl Ludwig von BERTALANFFY constituiu uma verdadeira mudança de paradigma no seio da teoria dos sistemas. Pretendendo elaborar um conceito de sistema aplicável a todo campo de investigação científica, o biólogo austríaco inovou: o sistema continua sendo mais do que a mera soma das partes, mas a perspectiva da relação parte/todo é substituída pela perspectiva da diferença entre sistema/entorno: o sistema é um conjunto de elementos que se relacionam entre eles mesmos e com um ambiente.
Desta feita, agrega-se ao paradigma tradicional aristotélico (diferenciação sistêmica “para o interior”) a distinção entre sistema e ambiente (diferenciação sistêmica “para o exterior”), concebendo aquele como um sistema aberto em constante intercâmbio — de energia, matéria ou informações (neguentropia) — com o entorno. O que define o sistema, segundo BERTALANFFY, é a coesão das interações dos elementos que o integram, estabelecendo o limite entre ele e ambiente. A distinção entre sistema e ambiente e a fundamentação da distinção entre sistemas abertos e fechados, são o legado fundamental deixado por tal formulação.
Neste momento nasce a chamada teoria geral dos sistemas (TGP), ou, na terminologia aqui empregada, o pensamento sistêmico. Enquanto o pensamento sistemático compreende o sistema como uma ordenação unitária interna de elementos, o pensamento sistêmico concebe o sistema como a mesma ordenação unitária em um contexto de relacionamento externo com um meio. Isso não quer dizer que o pensamento sistêmico substituiu o sistemático, ou que este se transformou naquele. O pensamento sistêmico nada mais foi do que uma bifurcação da noção de sistema: as duas formas de compreensão do mundo convivem como concepções autônomas e não contraditórias.
As insuficiências da concepção de BERTALANFFY fizeram com que a teoria geral dos sistemas recebesse as contribuições oferecidas pelo desenvolvimento da cibernética, enquanto ciência que trabalha com os mecanismos de controle (retro-alimentação) e de transmissão de informação (comunicação) no âmbito sistêmico. Todo sistema (seja uma máquina, seja um ser vivo) é capaz de auto-regulação, de modo que sua estabilidade e orientação dependem de mecanismos internos de controle.
A noção reitora, neste campo, é a retro-alimentação (feedback) — trata-se de uma estratégia de equacionamento do problema da entropia — entendida como a capacidade do sistema em se ajustar a uma conduta futura tendo em vista a memória formada em razão de fatos passados. Isso significa que o sistema capta informações do entorno (por meio de dispositivos perceptivos e sensoriais) e pode modificar — segundo o processamento da informação externa por estruturas internas — seu arranjo para obter uma melhor adaptação ao meio.
Neste primeiro momento da cibernética (primeira cibernética) estamos diante de um sistema aberto que trabalha unicamente com o modelo de relação input/output (entrada ou imissões/saída ou emissões) entre sistema e entorno, denominado de “modelo de black box”, assentado na observação externa do sistema.
Neste modelo, as informações do entorno recebidas pelo sistema como serviço ou prestação (input) são processadas internamente e depois despejadas no ambiente (output). Esta informação despejada volta posteriormente a ingressar no sistema, configurando uma retro-alimentação ou “efeito de retorno (feedback), de modo que aquele já conhece a informação e se adapta mais facilmente para processá-la, alternado para tanto sua estrutura. Com isso se obtém a homeostasis do sistema (constância dos elementos do sistema e evitação de desvios de orientação).
As falhas desta formulação levaram ao surgimento da denominada “cibernética de segunda ordem” ou “segunda cibernética” (MARUYAMA), onde a relação entre sistema e entorno se dá mediante a seletividade do sistema em relação ao processamento das informações do entorno. É o próprio sistema que decide processar ou não a informação externa, através de estruturas especializadas. Segundo a “lei da variedade necessária (formulada por ASHBY) a relação entre sistema e entorno é uma relação entre distintas complexidades, em que a complexidade do sistema, como requisito constitutivo, é sempre menor do que a complexidade do ambiente: a complexidade do ambiente não pode ser abarcada pelo sistema, até porque caso contrário as complexidades seriam idênticas e com isso inexistiria sistema e entorno, mas somente entorno.
A idéia de seletividade significa que o sistema seleciona apenas alguns estados do entorno (input seletivo), para os quais dispõe de estrutura para processar (para engatar um output), de modo que os demais estados são indiferentes para a operação do sistema. A noção de seleção torna-se, portanto, reitora da moderna teoria dos sistemas.
Esta segunda cibernética (a tese da distinção entre sistema e entorno como diferença entre complexidades e a idéia de seletividade enquanto combinação entre clausura e abertura do sistema) fornece a LUHMANN o ponto de partida fundamental de sua construção metodológica, denominada de “uma teoria geral dos sistemas de segunda geração: Second Order Cybernetics, ou Teoria dos sistemas que Observam (Observing Systems)”. Trata-se da teoria dos sistemas autorreferentes e autopoiéticos, a qual será analisada abaixo.
3. A teoria dos sistemas autopoiéticos
O grande giro sistêmico realizado por LUHMANN insere na discussão as contribuições da teoria da autoposiesis dos sistemas vivos— formulada pelos biólogos chilenos MATURANA e VARELA —, chegando-se a uma inovadora versão da teoria geral dos sistemas, segundo a qual é o próprio sistema que, simultaneamente fechado e aberto, produz seus elementos e estruturas (o chamado giro autopoiético). No campo estritamente jurídico (especialmente nas relações entre Direito, política e democracia), esta formulação tem sido desenvolvida por autores como DE GIORGI  e TEUBNER (este último também no campo do Direito Civil) .
3.1 Fundamentos
Antes de tudo é necessário indicar, muito brevemente, os quatro pilares metodológicos sobre os quais LUHMANN constrói seu pesado e intrincado aparato conceitual. O primeiro deles é sua pretensão de universalidade, resultando numa verdadeira teoria geral do conhecimento que excede os limites da sociologia (alcançando, por exemplo, a política, a religião, a economia, o direito, etc.). Por isso tais conceitos são marcados pelo alto grau de abstração, o que não deve ser visto como algo nocivo, senão como condição de obtenção de uma concepção efetivamente homogênea. Isso fica evidente na mudança de perspectiva na relação entre sujeito e objeto, representada na idéia de observação de segunda ordem. Não é possível conhecer a realidade (os sistemas) apenas o observando: o decisivo é observar como os próprios sistemas observam a si mesmos e aos demais sistemas enquanto partes de seu entorno (teoria dos sistemas que se observam).
Em segundo lugar, a concepção de Luhmann parte de pressupostos multidisciplinares, envolvendo contribuições da física, da matemática, da cibernética, da neurociência, da biologia. Todos estes ingredientes são adicionados à teoria geral dos sistemas de primeira ordem e culmina no surgimento de uma concepção sistêmica totalmente peculiar: “uma nova geração da teoria dos sistemas” .
O terceiro pressuposto é a metodologia funcionalista adotada. Trata-se de uma versão funcionalista distinta do funcionalismo clássico (funcionalismo estrutural elaborado por PARSONS no campo das ciências sociais, onde se privilegiava a estrutura em face da função (onde o decisivo era manter a estrutura do sistema a qualquer custo, estando as funções subordinadas ao desempenho desta tarefa). LUHMANN propõe um estruturalismo funcionalista, onde deve ser radicalmente privilegiado o conceito dinâmico de função em face da noção de estrutura.
A partir deste ponto de partida epistemológico, o objeto é encarado sempre como um problema real a ser resolvido pelo sistema. Parte-se da premissa que os sistemas possuem certas necessidades ou exigências de cuja satisfação depende sua própria subsistência. Cada elemento do sistema está voltado à satisfação destas necessidades, desempenhando uma determinada função idônea para sua manutenção. Nesta esteira, como se trata da busca por soluções que sejam eficientes, a ontologia clássica é substituída pelo construtivismo (enquanto uma ontologia da diferença, uma ontologia referida ao observador: uma ontologia da relação entre sistema e entorno, relação esta sempre contingente): o decisivo é indicar e escolher, dentre equivalentes funcionais, aqueles mecanismos com maior idoneidade (funcionalidade) para resolver o problema da existência sistêmica.
Desta forma, o funcionalismo não pretende saber a razão pela qual as coisas são de tal ou qual modo, mas indaga sobre o objeto de estudo em termos de busca de outras possibilidades funcionais (quais outras possibilidades poderiam cumprir uma determinada função? Quais outros elementos são equivalentes do ponto de vista funcional para processar a complexidade do ambiente?). Nestes termos, o relevante não é a existência do elemento em si e suas características, mas sim a função por ele desempenhada. O método funcional se torna, desta forma, um esquema de comparação entre alternativas de solução.
O último pressuposto diz respeito à utilidade dos paradoxos. Diferentemente da tradição do pensamento ocidental que considera o paradoxo como algo negativo, LUHMANN considera o paradoxo como algo positivo, construtivo que não leva a uma real contradição e à tautologia, mas à unidade conceitual, quando desparadoxizado pelo competente código binário. Cada sistema possui seu paradoxo específico (o do sistema econômico, por exemplo, é o paradoxo da escassez: cada acesso a bens escassos, que pretende diminuir sua escassez, a aumenta; o do sistema jurídico reside na positividade do Direito: este é válido apenas porque poderia ser diferente do que é). Mas dois deles possuem natureza geral, pertencentes a todos os sistemas. O primeiro é o paradoxo geral da unidade da diferença (unitas multiplex) entre sistema e ambiente: estes obtêm as respectivas unidades a partir da diferença marcada pelos seus limites. O segundo é o paradoxo do fechamento e abertura do sistema: o sistema só pode ser fechado porque é aberto.
3.2 Conceitos gerais   
Como visto, desde uma perspectiva funcional, o decisivo é a resolução de um problema. Este, para a teoria dos sistemas luhmanniana, nada mais é do que a complexidade do mundo (enquanto objeto de investigação). Por complexidade, deve-se entender o conjunto de possibilidades de eventos, ou seja, a totalidade dos eventos possíveis. O complexo define-se pela falta de correspondência entre os elementos do mundo: com o aumento quantitativo destes, o número das relações possíveis entre os mesmos aumenta em proporção geométrica, de modo que não mais é possível que todo elemento fique vinculado a outro (impossibilidade de correspondência biunívoca entre os elementos). Assim, a complexidade é o conjunto daqueles acontecimentos que podem ou não ocorrer: para o observador tais fatos não são necessários, mas apenas possíveis. Há sempre mais possibilidade no mundo do que se pode realizar. O mundo é complexo porque tudo pode acontecer.
A complexidade está diretamente ligada ao conceito de contingência: como todos os acontecimentos do mundo não são eventos necessários, mas somente possibilidades de realização, toda a realidade existente no mundo poderia ser diferente do que é. Para o observador a possibilidade do real pode ser enganosa, confirmando-se ao final como algo inexistente e inatingível. Aquilo que se transforma em realidade pode ser diferente da possibilidade esperada pelo sujeito. Neste contexto de complexidade e contingência, resulta impossível conhecer o mundo em todas as suas possibilidades de realização.
A complexidade inerente ao mundo deve ser reconhecida e reduzida. É preciso, então, realizar um corte da realidade para apreendê-la. O complexo implica na coação à seletividade (que também é inerente ao mundo), obrigando o observador a eleger (seleção) uma entre as inúmeras alternativas de experiência existentes no amplo leque de possibilidades de acontecimento. O sistema é justamente o instrumento que reduz a complexidade do mundo a ponto dela poder ser suscetível de ser absorvida pelo observador.
Para LUHMANN, o sistema é aquilo que se diferencia de um entorno ou ambiente (unidade da diferença). O ambiente ou entorno nada mais é do que um complexo confuso e dinâmico de relações delimitado por horizontes abertos, cujos limites podem, em todo caso, ser alterados. O sistema constitui-se através da criação de uma fronteira que o distingue do ambiente: dentro da fronteira (boundary) só há sistema, e fora dela só há entorno. Enquanto redução de uma parcela da complexidade do mundo, cada sistema tem seu próprio entorno. E o entorno de um sistema pode conter, por sua vez, outros sistemas, permanecendo estes como entorno para o sistema analisado. A diferença constitutiva do sistema é definida como um desnível de complexidade (diferença de complexidades): o entorno é sempre mais complexo que o sistema.
O sistema é composto por elementos (que é a unidade indecomponível) e pela relação (estrutura). A complexidade sistêmica (“complexidade interna”) consiste justamente no aumento de elementos e/ou de suas relações entre si. Dita complexidade não está dada ontologicamente, senão que é aquela definida como suficiente pelo próprio sistema, e, portanto, é contingente. O elemento é definido de modo não ontológico, mas funcional.
A característica fundamental do sistema é sua auto-referência: o sistema é objeto de sua própria análise, e define a si mesmo a partir do reconhecimento de sua diferença em face do entorno. Além desta primeira operação, existem outras operações auto-referentes que o sistema realiza depois de formado. A primeira delas é a observação, pela qual o sistema, com base em um esquema (programa) de diferenças (código binário — que através dos seus valores positivo/negativo, desparadoxiza o sistema através do reconhecimento dos ruídos como diferença, excluindo terceiros valores e consagrando a unidade como diferença) por ele mesmo definido, observa a si mesmo (auto-observação) e o seu entorno (hetero-observação), sem que isso impeça que o sistema seja também objeto de observação de outros sistemas (hetero-referência). É a partir da observação que o sistema pode, através de sua seletividade (recorte da complexidade em razão da escolha de certas possibilidades em detrimento de outras), reduzir a complexidade do entorno.
A noção de auto-referência é o que permite que o sistema seja ao mesmo tempo fechado e aberto. Este paradoxo é informado pela operação auto-referencial mais importante: a autopoiesis do sistema (auto-produção), pela qual o próprio sistema produz sua estrutura e seus elementos (auto-organização) e determina seu estado seguinte a partir da limitação anterior obtida com a operação. Em suma: o sistema se constitui e se mantém através de suas operações peculiares e exclusivas, com base na auto-observação mediada pelo código binário. É a autonomia ou independência do sistema o campo de suas operações. Este fechamento operativo é condição de abertura cognitiva — acoplamento estrutural (interdependência) — do sistema, dado que, para que as perturbações do entorno não o destruam ou o desestabilizem, aquele precisa estar suficientemente seguro e equilibrado mediante suas operações sistêmicas. Eis outro paradoxo sistêmico: a abertura através do fechamento.
O sistema é aberto cognitivamente para ser estimulado através de ruídos ou perturbações oriundas do ambiente. Com isso, obtém a energia necessária para alimentar suas operações internas. Não é aberto no sentido da teoria tradicional, já que a relação entre as provocações do entorno e as respostas do sistema não é causal e linear (a cada perturbação uma resposta do sistema); também não é aberto nos termos do modelo cibernético de input/output (a cada perturbação registrada na memória do sistema uma resposta). Mais bem, trata-se de uma abertura seletiva, enquanto relação de imputação derivada da auto-referencialidade: depois de observar o entorno e suas demandas, bem como a si mesmo e sua capacidade estrutural para redução da complexidade, o sistema seleciona aqueles ruídos (perturbações ou irritações) que serão recebidos e considerados como informação (aqueles dados que são reconhecidos pelo sistema como distinções segundo o código de programação binário) apta a gerar novas estruturas capazes de reduzir a complexidade externa.
Quando mais o sistema reduz a complexidade externa, mais aumenta a complexidade interna: diminuir a complexidade é aumentá-la. De tal modo que a complexidade sistêmica pode chegar a um nível tal que exija a diferenciação, dentro do sistema, de elementos e estruturas com funções de reduzir certas parcelas específicas de complexidade. Com isso o sistema dá origem a subsistemas que passam a pertencer ao entorno do sistema de origem (sistema global). Esta diferenciação/especialização sistêmica, consistente da aplicação interna da diferença sistema/entorno — reentrada (re-entry) —, é o meio pelo qual se dá a evolução dos sistemas.
Os diversos sistemas não se comunicam entre si (os demais sistemas constituem, na verdade, entorno para o sistema analisado, e um sistema autopoiético não mantém comunicação com o entorno). Mas isso não significa que eles não mantêm relações entre si. O acoplamento estrutural é justamente o modo pelo qual se dá a relação entre sistema e entorno (e também relações inter-sistêmicas, dado que os outros sistemas constituem ambiente para o primeiro): trata-se da operação pela qual um primeiro sistema coloca à disposição de um segundo sistema sua própria estrutura para que este possa continuar construindo sua específica complexidade. Um modo específico de acoplamento estrutural é a interpenetração, existente quando o acoplamento ocorre entre sistemas que evoluem conjunta e reciprocamente: o sistema jurídico e sistema econômico, por exemplo, interpenetram-se na regulação da moeda de curso legal e dos contratos.
Segundo LUHMANN, existem três classes de sistemas auto-referenciais e autopoiéticos, cada um com sua respectiva operação redutora da complexidade: (i) Os sistemas vivos ou biológicos (células, cérebro e organismos), (ii) os sistemas psíquicos ou de consciência (representações, processamento da atenção) e (iii) os sistemas sociais (interações, organizações e sociedades). Enquanto os sistemas sociais e psíquicos se constituem e se mantém pelo sentido, os sistemas vivos se constituem e se mantém através de processos vitais físico-químicos de ordem intracelular, orgânica, neurológica, etc. Por sua vez, os sistemas sociais (reproduzem sentido) e os sistemas psíquicos (experimentam ou percebem sentido) também se diferenciam pelas respectivas operações de base: enquanto nos sistemas psíquicos a operação constitutiva é o pensamento (consciência, enquanto constituição psicológica do indivíduo), nos sistemas sociais a operação é a comunicação, que é a única operação genuinamente social (ações de várias pessoas que se inter-relacionam por meio do sentido).
Evidentemente, LUHMANN concentra sua análise nos sistemas sociais, pretendendo com isso construir uma teoria sociológica que seja suficientemente capaz de observar e propor mecanismos de redução da crescente complexidade da sociedade contemporânea. Os sistemas sociais não são constituídos por indivíduos, mas apenas por comunicações, enquanto suas unidades mínimas (“sociedade sem homens”). Aqueles estão no entorno do sistema social. A comunicação é o processo que procura transmitir informações (nem sempre consegue, diante da improbabilidade da comunicação). Trata-se do elemento de produção autopoiética do sistema social: somente a comunicação gera comunicação (desenvolvimento de mais comunicação a partir da comunicação).
O processo de comunicação é integrado por três seleções distintas (ou três momentos de seleção): (i) a primeira delas é a informação, enquanto simples escolha entre um leque de possibilidades; (ii) a segunda é a notificação, como meio de expressão que participa a informação ao receptor; (iii) o ato de entender, que é o elemento decisivo, através do qual a comunicação se perfaz. Somente há comunicação quando o destinatário compreende (aceitando ou rechaçando) a informação contida na notificação e orienta sua conduta de acordo com este entendimento. Em suma: só há comunicação quando ocorrem estas três seleções.
O fato de que somente a comunicação reproduz comunicação exclui os estados psicológicos e biológicos como elementos constitutivos e intrínsecos da operação comunicativa. A despeito de estar fora do sistema social, o indivíduo é elemento fundamental na comunicação, dado que os sistemas sociais necessitam da vida para existir: aquela somente ocorre se mediada pelo sistema psíquico. Tanto o sistema biológico quanto o psíquico devem estar presentes para que a comunicação possa emergir.  É que somente a comunicação gera comunicação, mas não é capaz de percebê-la. A consciência é o único sistema com capacidade de perceber a comunicação, apesar de não gerá-la.  Em suma: a consciência é imprescindível para a comunicação, de modo que o sistema social e o sistema psíquico estão estruturalmente acoplados (interpenetração). É desta forma que se dá a relação entre indivíduo e sociedade.
A teoria sistêmica da sociedade possui diversos níveis de generalização[24]. Nesta trilha, são apontadas três classes de sistemas sociais (sistemas de comunicação). A interação (sistemas de interação) é o mais simples e precário deles, constituída quando os indivíduos presentes se percebem mutuamente. Aqui a comunicação se constitui única e exclusivamente em razão da mera presença de dois sujeitos em um mesmo lugar e em um mesmo momento. É o sistema típico do contato originário: quando alter seleciona algo através de sua conduta (por exemplo, um cumprimento), comunica algo ao ego, que por sua vez pode processar tal comunicação como ponto de partida para outras seleções (por exemplo, retribuir o cumprimento de alter). A interação, todavia, é um sistema funcional para reduzir apenas pequenas complexidades. De toda forma, em razão de sua escassa estabilidade, é insuficiente para satisfazer as necessidades sociais de orientação.
A segunda classe de sistema social é a organização. Trata-se de um sistema mais estável do que a interação, capaz de garantir de forma mais intensa a permanência das estruturas de expectativas, dotadas aqui de maior confiabilidade. Aqui já não basta a mera presença para deflagrar o surgimento do sistema. Aquela é substituída pela filiação à organização. Ao se filiar, o sujeito consente em reprimir a espontaneidade de sua conduta e conduzi-la de acordo com certas pautas de comportamento que, reunidas na noção de papel, conferem estabilidade ao sistema.
Por fim, o mais amplo e complexo sistema social é a sociedade, constituída por todas as comunicações existentes. Enquanto sistema mais abstrato, a sociedade possibilita a existência das demais classes de sistemas sociais situadas nos níveis inferiores de abstração (interações e organizações). E enquanto sistema global, a sociedade dá suporte, através das operações de diferenciação/especialização de funções, aos vários sistemas abstratos parciais (subsistemas): economia, política, direito, religião, educação, moral, ciência, etc.
O aumento crescente da complexidade do entorno, e conseqüentemente, da própria complexidade reduzida do sistema social, faz com que este se diferencie em subsistemas sociais voltados ao desempenho de funções específicas, segundo um código binário operacional próprio e os respectivos meios de comunicação simbolicamente generalizados (definidos como os instrumentos indicativos da unidade da diferença de um dado para o sistema): o Direito (código lícito/ilícito), a economia (código lucro/prejuízo) a política (código progressista/conservador), a ciência (código verdadeiro/falso), da educação (ensino/não ensino), da moral (código bem/mal) cada um com função e operação autopoiética próprias. Esta especialização de funções contribui decisivamente para a redução da crescente complexidade social. E ao mesmo tempo aumenta a complexidade do sistema global, que contém agora mais sistemas com as respectivas parcelas de complexidade.
3.3. O Direito como estrutura do sistema social
O problema básico dos sistemas é a complexidade do mundo. Isso fica mais evidente nos sistemas sociais e psíquicos: o mundo oferece aos homens uma infinidade de possíveis experiências e ações; ocorre que a limitada capacidade humana de percepção do mundo e da assimilação de informação faz com que sempre existam mais possibilidades do que se pode realizar. A complexidade obriga à seleção, e por isso, traz consigo a contingência: cada uma das possibilidades ou experiências ofertadas pelo mundo pode ser diferente do esperado, podem ou não se realizar. Esta contingência simples nada mais é do que o risco de desapontamento em face da possibilidade de um evento (complexidade e contingência no âmbito da experimentação e assimilação).
Nos contatos sociais esta contingência é elevada a um segundo plano, o da dupla contingência. Alter não é capaz de esperar algo de Ego, razão pela qual não possui um modelo de orientação para sua conduta. Aquele só poderá orientar seu comportamento se tiver certa expectativa a respeito do comportamento do Ego (expectativa de comportamento). Este, por sua vez, também não pode orientar seu comportamento de acordo com um modelo, dado que para tanto deveria poder conhecer (esperar) o que Alter espera dele, ou seja, deveria ter uma expectativa sobre a expectativa do outro (expectativa de expectativa).
Neste contexto, para LUHMANN, o Direito é a generalização/estabilização temporal, social e material de expectativas de comportamento, capaz de imunizá-las simbolicamente. Na dimensão temporal, a generalização consiste em dotar a expectativa de instrumentos pelos quais a mesma possa se estabilizar (como um serviço de reparo ou manutenção da estrutura) em caso de desapontamento. Ou seja, trata-se da estabilização da expectativa através do processamento de sua defraudação de modo que a mesma possa continuar prosperando enquanto modelo de orientação de condutas.
As expectativas temporalmente estáveis são expectativas normativas, vale dizer, constituem verdadeiras normas. Estas são definidas como expectativas de conduta estabilizadas contrafaticamente, isto é, mantida para o futuro a despeito da ocorrência do fato desestabilizador (conduta desviada). A expectativa violada é mantida (não é abandonada) e a conduta desviada (discrepância) é atribuída ao autor enquanto algo irrelevante para sua vigência. Em suma: a generalização temporal da expectativa nada mais é do que sua normatização, de modo a fazer com que a vigência da mesma se mantenha de domingo a domingo, sem necessidade de renovação ou certificação, independente de quem espera ou não.
Na dimensão social, a generalização consiste na institucionalização das expectativas. Institucionalizar é fazer com que a expectativa saia do modelo simples de interação social entre duas posições e obtenha uma ressonância geral capaz de constituí-la como pauta de comportamento comum válida para todos. A institucionalização apóia a expectativa no consenso esperado a partir de terceiros, ou seja, na concordância genérica ou consenso antecipado ou presumido acerca do conteúdo da expectativa (suposição fictícia de consenso). Em suma: a generalização social atribui à expectativa um consenso geral suposto, independentemente do fato de existir ou não a aprovação individual.
Na dimensão material (prática), a generalização consiste em atribuir à expectativa um sentido objetivo e prático de imunização simbólica das demais possibilidades de comportamento. É que as expectativas não estão soltas no ar, dispostas de modo isolado, atomizado. Trata-se do agrupamento ou entrelaçamento de expectativas normativas e institucionais em um complexo de sentido informado por fundamentações e confirmações mútuas capaz de identificar os comportamentos convergentes e divergentes em termos de seu significado comunicativo para a vigência da expectativa. Em suma: esta modalidade de generalização tem a função de identificar as expectativas em um contexto fático. Na moderna sociedade de alta complexidade, aquela identificação de complexos práticos de sentido pode ocorrer através de dois instrumentos (princípios de identificação do complexo de expectativas): papéis sociais e os programas de decisões. A primazia constitutiva deste segundo princípio (já que é ele, e não os papéis que constituem a operação autopoiética do sistema) faz com que Direito seja definido como um complexo de programas decisórios.
Mas como estes três mecanismos de generalização tendem a uma natural incongruência, a função do Direito é generalizar congruentemente as expectativas comportamentais. Garantir a congruência de uma expectativa significa alcançar a compatibilidade recíproca das diversas dimensões da generalização. Somente esta congruência é capaz de formar uma seleção mais estreita e idônea para figurar como estrutura do sistema social. Atendidos todos estes pressupostos, temos uma expectativa especificamente jurídica, garantida pela sanção enquanto meio institucionalizado de manutenção ou estabilização contrafática da norma jurídica.
Em suma, o Direito é o fato social que garante aquele patamar mínimo e imprescindível de orientação de condutas, constituindo a base da ordem social.  Direito e sociedade estão em relação de interdependência (acoplamento estrutural) recíproca: o Direito é uma estrutura do sistema social, ou seja, constitui parte da sociedade. Sua função essencial é reduzir uma parcela da complexidade desestruturada da sociedade e, ao mesmo tempo, fazer com que esta alcance uma complexidade mais alta e estruturada. Em suma: o Direito é “uma construção de alta complexidade estruturada”, satisfazendo a necessidade de ordenamento na sociedade. Sem o Direito, não há orientação de condutas no meio social.
Enquanto sistema auto-referencial e autopoiético, o Direito desempenha sua função através de seu código binário privativo lícito/ilícito ou direito/não direito (Recht/Unrecht) responsável por sua des-paradoxização (o paradoxo estrutural do Direito é a produção simultânea de direito e não direito e sua positividade, pois o Direito somente é Direito porque seu conteúdo poderia ser diferente). Toda e qualquer comunicação jurídica (sempre interna ao sistema) orienta-se unicamente por este código. Através deste o Direito processa em seu interior expectativas normativas jurídicas capazes de manter a si mesmas em situações de conflito. O meio de comunicação simbolicamente generalizado é a norma jurídica, definida como expectativa estabilizada contrafaticamente como dever-ser através de uma sanção jurídica.
Nesta trilha, o Direito é constituído através de programas decisórios jurídicos. Ou seja, constitui-se e opera mediante uma programação condicional (condicionamento das normas jurídicas): se forem preenchidas determinadas condições, deve-se adotar uma determinada decisão. Esta programação condicional é uma decisão jurídica porque é definida pelo próprio sistema como o elemento de sua constituição e reprodução. O direito se diferencia do sistema social através de uma decisão política, definindo que programação do sistema jurídico será estabelecida através de processos decisórios de natureza exclusivamente jurídica. Em suma: o Direito se cria e atua através de processos decisórios jurídicos.
Nesta trilha, enquanto sistema autopoiético, é o Direito que produz o Direito, ou seja, as normas jurídicas são produzidas a partir de outras normas jurídicas. Só o Direito pode dizer o que é Direito e o que não o é. Isto implica na positivação do Direito, vale dizer, na fixação do Direito pela legislação e não segundo exigências do Direito Natural. A positividade — enquanto acoplamento estrutural entre Direito e Política - a legislação tem por base uma decisão política - ao atestar o caráter constituído do Direito, permite que o mesmo possa evoluir (flexibilidade que possibilita sua diferenciação) em conformidade com as exigências de redução de complexidade da sociedade e em obediência às normas jurídicas estabelecidas para sua alteração, por ele mesmo estabelecidas. Enquanto Direito Positivo, o próprio sistema estabelece as condições de sua própria validez, se legitimando como Direito. Como ocorre com todos os sistemas sociais, a legitimação da atuação do sistema jurídico é dada pelo próprio sistema (toda legitimação é auto-legitimação). Em suma: a legalidade é a única legitimidade. Eis o paradoxo da validade ou constituição do Direito: o Direito positivo tem validade porque ele poderia ser modificado através de uma decisão jurídica.
A auto-legitimação do sistema jurídico (assim como o de qualquer outro sistema social) não é informada pela existência de valores a respeito do convencimento da vigência das normas, nem pela verdade ou justiça, nem pela existência de um consenso efetivo. O que legitima o Direito é a necessidade de decisão capaz de reestruturar as expectativas de comportamento. Isso faz com que a legitimação seja alcançada através da observância das regras estatuídas para operação funcional do próprio sistema (a verdade não é o fim, mas pode ser um meio de legitimação). Trata-se, assim, de uma legitimação pelo procedimento, ou seja, de uma legitimação através de processos decisórios jurídicos (procedimentos juridicamente organizados). O procedimento é um sistema social jurídico diferenciado, estruturado por normas jurídicas específicas.
Estamos diante de um conceito funcional de legitimação: dado que sua função é assegurar que as decisões emitidas pelo sistema sejam obrigatórias para o comportamento dos envolvidos (sejam tomadas como premissa de comportamento, reduzindo, desta forma, a complexidade social), a legitimidade é definida como “uma disposição generalizada para aceitar decisões de conteúdo ainda não definido, dentro de certos limites de tolerância”. Com isso se institucionaliza, através do consenso pressuposto, o reconhecimento generalizado e a aceitação da decisão como base de estruturação de expectativas. Em suma: a legitimação da decisão jurídica através do procedimento está voltada à (re) estruturação contínua das expectativas.
Nesta esteira, são apontados três processos decisórios jurídicos de legitimação: (i) o processo legal de eleição política, consistente na formação do corpo de representantes do povo responsáveis pela manifestação de sua vontade, com a função de manter em aberto, segundo os princípios da universalidade e da igualdade, as alternativas políticas de diferenciação do Direito; (ii) o processo legislativo (procedimento parlamentar de legislação), constituído pelo debate público entre os representantes eleitos e definido como momento constitutivo da positividade do Direito, definindo as expectativas a serem consideradas como estruturas da sociedade; e (iii) o processo judiciário, definido como a realização concreta de decisão (aplicação do Direito) através da adoção de papéis processuais gerais das partes e do papel especial de juiz, voltada à reestruturação de expectativas colocadas em dúvida diante do juízo. Estes processos dão origem a decisões programantes que exigem a estruturação de decisões programadas pelo próprio sistema. Segundo LUHMANN, tais operações legitimantes devem estar de acordo com a Constituição, enquanto acoplamento do sistema jurídico com o sistema político.
4. Conclusões
Desta forma o presente trabalho estabeleceu de forma resumida alguns dos pontos centrais da teoria dos sistemas autorreferentes de Niklas Luhmann, demonstrando seu amplo alcance teórico (universalidade) para além do Direito, assim como a distinção entre os pensamentos sistemático e sistêmico. O Direito como um das estruturas do sistema social diferencia-se das outras, através do seu código binário (direito/não direito), possuindo sua forma própria de operação, por isso só o Direito pode dizer o que é ou não Direito.