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quarta-feira, 15 de junho de 2011

O DIREITO RACIONAL DE KANT

A doutrina jurídica tardia do filósofo alemão concretiza a tese política na forma contratual. Kant delinea o problema da autoridade política por meio de considerações elementares sobre aspectos básicos da razão humana e da liberdade de agir para mostrar que somente sob o regime da idéia de um contrato social pode-se dizer que uma vontade livre tem a genuína possibilidade de fazer aquisições jurídicas consistente. A idéia de obrigação contratual – não sua realidade histórica – é exposta em Kant como pressuposto necessário para a atividade prática da razão, na medida em que a razão é habilitada a ordenar conjuntamente os domínios do direito. A idéia de um contrato social é posta em Kant como condição fundamental da possibilidade de ações livres.
O doutrinador jurídico alemão rejeita a posição que reduz a idéia de um contrato social à construção hipotética. Com isso, Kant concede destaque distintivo ao caráter normativo da autoridade política, pois meras hipóteses não têm condições de reivindicar qualquer conduta dos seres livres. De acordo com Thompson, abandonar o estado natural e submeter-se à autoridade política não é um gesto da razão prudencial, mas um ditado da razão pura prática, distinto dos termos propostos, por exemplo, pela ‘original position’ rawlsiana,1 onde o lócus normativo do contratualismo está ocupado por autômatos éticos que maximalizam a distribuição eqüitativa dos bens gerados no seio de sociedades capitalistas.

KANT E OS PRECEITOS DE ULPIANO

Na primeira parte da divisão geral da doutrina do direito,2 no âmbito de uma reinterpretação dos clássicos preceitos de Ulpiano (honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere), Kant elenca três tipos inovadores de obrigações jurídicas. Considerados comumente como princípios redundantes, o imperativo preceitua probidade (vive honestamente), postula proibição na versão negativa (não faças injustiça a ninguém) e, finalmente, vertido para o positivo prevê que cada um receba o que lhe cabe (dá o seu a quem tem direito).
O mandamento de viver honestamente não visa ao incomum, a altos cargos ou  deres extraordinários; ser honesto conjuga honra e dignidade, virtude com caráter. Em termos jurídicos, trata-se da estima pública presumida de quem vive incorrupto. Kant dá ao imperativo (honeste vive) um tratamento especial na arquitetônica da Metafísica dos costumes. Embora o conceba como dever jurídico, a honestas iuridica não é objeto de legislação externa, constituindo uma exceção da divisão geral dos deveres em officia iuris, para os quais é possível uma legislação exterior, e officia virtutis, para os quais tal legislação não é possível. Tal dever jurídico, definido por Kant como “obrigatoriedade advinda do direito da humanidade em nossa própria pessoa,”3 obriga cada ser humano a não fazer-se a si mesmo de instrumento para os outros, mas ser-lhes ao mesmo tempo fim. A lex iusti vincula o homem ao dever de levar uma vida honesta, sendo pessoa para seus semelhantes.
Excluído definitivamente dos domínios da ética, o dever jurídico interno não mais afeta a liberdade interna, um bem doravante colocado por Kant aos cuidados da legislação ética. Como condição subjetiva da liberdade externa, a honestidade jurídica zela pela obrigatoriedade que vincula cada humano a seu direito subjetivo, para poder comprometê-lo com o direito subjetivo dos demais homens.
Não menos formal do que o imperativo categórico, a honradez jurídica constitui a necessária contraparte jurídica interna ao direito da humanidade que habilita cada homem a coagir seu semelhante de acordo com a lei pura do direito. “A necessidade prática de respeitar-se externamente como pessoas jurídicas umas às outras”, escreve Kersting, “encontra seu necessário complemento no dever de apresentarse aos outros como pessoa jurídica. Diz a razão que o direito deve ser, então ela diz ao mesmo tempo também: sê uma pessoa, honeste vive”.4 Quem leva uma vida ilibada não apenas evita ser injusto aos demais, mas também não permite que outros lhe façam injustiça; tampouco tolera humilhações e não se avilta para agrado dos semelhantes.
A posição de irrestrita dignidade jurídica, Kant a sustenta com o direito originário de cada ser humano de manter-se, ao lado dos demais, sobre o solo onde a natureza o põe ou as contigências da vida o deixam e, assim, lhe propicia o espaço necessário para fazer uso de sua liberdade. Kant escreve: “Todos os homens encontram- se originariamente na posse comum do solo da terra inteira (communio fundi originaria), munidos pela natureza com vontade própria (e) aptos a fazerem uso dela (lex iusti)”.5 Essa comunhão originária de posse não-empírica, claramente distinta da suposta comunhão primeva de uma posse historicamente inicial, constitui, segundo Kant, “um conceito prático da razão que contém a priori o princípio de que os homens só podem usar o lugar sobre a terra segundo princípios de direito”.

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