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quarta-feira, 19 de outubro de 2011

A LEGÍTIMA DEFESA PUTATIVA E A TEORIA LIMITADA DA CULPABILIDADE

Dario Reisinger Ferreira
Ricardo Lemos Maia Leite de Carvalho

A legítima defesa putativa se constitui na conduta do agente, que ao se imaginar em situação de legítima defesa, reage a esta suposta agressão injusta.
São relevantes ao estudo da legítima defesa putativa os pressupostos da legítima defesa, quais sejam os elementos objetivos (existência de agressão injusta, atual ou iminente, moderação no uso dos meios necessários); e o elemento subjetivo (vontade do agente em se defender).
A legítima defesa putativa está inserida entre as descriminantes putativas, previstas no artigo 20, §1º, do Código Penal.
As descriminantes putativas são divididas, doutrinariamente, entre as que ocorrem em relação a pressuposto fático de uma excludente de ilicitude, e, quando relacionadas ao limite ou a existência de uma causa de justificação.
Ao que se trate das descriminantes putativas fáticas, existe divergência doutrinária entre os juristas que adotam as diferentes teorias da culpabilidade, limitada ou extremada.
A teoria limitada da culpabilidade é adotada expressamente pelo Código Penal, ao que se verifique o item 17 da exposição de motivos da parte geral.
Imaginemos que, certa pessoa, tarde da noite, caminha por uma rua mal iluminada, em situação que já seria bastante amedrontadora, ainda mais pelos recentes assassinatos ocorridos naquela região, todos cometidos por um mesmo maníaco, com retrato falado amplamente divulgado pela imprensa. Ao se encontrar na metade da rua avistou uma figura que caminhava na sua direção, seu coração acelerou ao perceber que as características daquele indivíduo eram exatamente aquelas do temido criminoso. Cada passo seu correspondia a outro daquele defronte, o tempo se esgotava como o “tic-tac” do relógio, ouvia-se apenas o som dos passos, sempre em dobro de forma cadenciada. Nosso personagem já se imaginava nos noticiários como a última vítima do assassino “X”. A distância que separava os dois não era superior a
duzentos metros quando o “temido” homem coloca a mão no bolso, ao que o outro, suando frio, com as pernas bambas de tanto temor, saca de sua arma e dispara tiro fatal contra o suposto agressor. Ao se aproximar do corpo verifica chocado que aquele homem apenas buscava uma lanterna em seu bolso, não uma arma como havia imaginado.
Aquele que reage a uma suposta agressão, que se mostrou real apenas em sua imaginação, e que se existisse tornaria sua ação legítima age em legítima defesa putativa.
O Professor Nelson Hungria, em 1936 se atentou em dissertação ao tema, e assim delimitou o instituto da legítima defesa putativa:
“Dá-se a legítima defesa putativa quando alguém erroneamente se julga em face de uma agressão actual e injusta, e portanto, legalmente autorizado á reação que empreende”. (HOFFBAUER 1936) Compara-se o suposto agredido, que reage em legítima defesa putativa, ao famoso herói de Cervantes (Dom Quixote, “O Cavaleiro da triste figura”), pois estaria a investir contra moinhos de vento aquele que não possuía violência a combater .
Na legítima defesa putativa o agente equivoca-se em relação a um elemento objetivo da legítima defesa “real”: a presença de uma agressão injusta atual (que acontece naquele momento), ou iminente (que esta em vias de acontecer), o uso moderado dos meios necessários para a defesa (utilizar o que necessite para defender-se com eficácia). E ainda, é encontrado em sua conduta o elemento subjetivo da legítima defesa “real”: vontade de se defender.
Todavia, não se confunda legítima defesa putativa com legítima defesa “real”, pois enquanto a primeira existirá no entendimento equivocado do agente em relação aos pressupostos objetivos da legítima defesa, a segunda só se configura com a existência concreta desses pressupostos. Ambas só possuem em comum o pressuposto subjetivo, ou seja, a vontade do agente em se defender.
Não obstante a íntima relação com os pressupostos da legítima defesa “real” (excludente de ilicitude), a legítima defesa putativa esta inserida entre as descriminantes putativas (excludentes de culpabilidade), que estão textualmente
previstas no artigo 20, §1º do Código Penal.
Entre as descriminantes putativas, além da legítima defesa putativa, existe também o estado de necessidade putativo, o exercício regular de direito putativo e o estrito cumprimento de dever legal putativo.
Note-se que as descriminantes putativas possuem relação íntima com as causas excludentes de ilicitude, justamente por se configurarem (as descriminantes putativas) na conduta do agente que se imaginou na presença de uma causa, que se realmente existisse justificaria sua conduta, ou seja, uma causa de justificação.
A legítima defesa putativa, assim como todas as outras descriminantes putativas, se constitui por erro que existirá em relação aos pressupostos fáticos, a existência, ou os limites de uma excludente de ilicitude.
Destarte, em relação a essa divisão quanto à incidência do erro nas descriminantes putativas, o erro sobre pressuposto fático de uma causa de justificação ocorre quando o sujeito se imagina na presença de uma situação de fato caracterizadora de uma excludente, como a agressão injusta na legítima defesa, por exemplo. Por sua vez, quando o agente imaginar que sua conduta é autorizada por uma excludente de ilicitude, que na verdade não existe, como no caso do sujeito que imagina estar em vigor norma autorizadora da eutanásia, por exemplo, temos o erro quanto à existência de uma causa justificadora. E por último, verifica-se o erro quanto aos limites de uma excludente de ilicitude quando o agente imagina estar autorizado a defender-se com uma “força”, que na verdade não pode, e aqui citemos o exemplo do homem que mata sua esposa ao flagrá-la em adultério, ao que imagine defender legitimamente sua honra.
No tratamento das descriminantes putativas, que ocorrem por erro quanto à existência ou o limite de uma excludente de ilicitude, é pacífica a doutrina em estabelecer que nestas hipóteses configura-se o erro de proibição. Contudo, há divergência doutrinária, entre os defensores das teorias, limitada e extremada, da culpabilidade, acerca do tratamento que deve ser dado ao erro nas descriminantes putativas fáticas.
Os doutrinadores, que são adeptos da teoria limitada da culpabilidade, defendem que o erro, nas descriminantes putativas, que ocorrem em relação a um pressuposto fático de uma causa de justificação se constitui em erro de tipo, enquanto aqueles que preferem a teoria extremada da culpabilidade defendem, que, nesse caso, o que existe é erro de proibição.
Essa divergência doutrinária possui grande importância, principalmente pelas diferentes conseqüências que são trazidas pelo erro de tipo e pelo erro de proibição.
Cabe esclarecer aqui que o erro pode ser evitável (inescusável) ou inevitável (escusável), em que o primeiro com prudência normal poderia ter sido evitado, e o segundo mesmo com o emprego de cuidado mediano, característico da conduta do homem comum, não seria evitado.

Acerca do erro invencível e vencível, as palavras do Professor Nelson Hungria:

“Um critério deve ser prefixado: é de presumir-se, usque dum probetur contrarium, que o erro obstou, invencivelmente, a possibilidade de conhecimento da injuricidade da ação, quando se verifica que à errônea impressão do agente, nas mesmas circunstâncias em que este se encontrou, não teria escapado uma pêssoa de attenção e calma comuns. O ponto de referência é exclusivamente o homem normal” (HOFFBAUER 1936) Eis que, tratando-se de erro de tipo a ocorrência do erro evitável afasta o dolo da conduta, e mantém a punição do crime culposo, se existir a previsão no tipo penal, já no erro de proibição a configuração do erro evitável apenas autoriza a redução da pena do agente de um sexto a um terço, com a manutenção do dolo. E quando for o erro inevitável, tanto no erro de tipo quanto no erro de proibição é afastada a culpabilidade.
Apesar de toda a riqueza argumentativa dos doutrinadores adeptos da teoria extremada, a teoria limitada da culpabilidade deve ser respeitada como a dominante no ordenamento jurídico brasileiro, pois é expressamente adotada pelo Código Penal (item 17 da exposição de motivos da Parte Geral).
Nesse sentido, os defensores da teoria extremada da culpabilidade esclarecem que o entendimento que propõem é acadêmico, e que embora vejam nesta teoria o tratamento mais adequado para as descriminantes putativas, não foi essa a opção do legislador, no Código Penal. Assim, escreve o Professor Guilherme de Souza Nucci (defensor da teoria extremada da culpabilidade), que, embora admita a adoção legal pela teoria limitada, continua adepto da teoria extremada:
“Cremos que, na visão atual do Código Penal, deu-se ao erro quanto aos pressupostos fáticos que compõem a excludente de ilicitude um tratamento de erro de tipo, embora seja, na essência, um erro de proibição. Inserida a hipótese no §1º do art. 20 (erro de tipo), bem como delineando-se, claramente, que, havendo erro derivado de culpa, pune-se o agente por delito culposo, é fatal concluir que se cuidou dessa situação tal como se faz no caput do artigo com o erro de tipo. (...)
A despeito de reconhecermos a posição legal, continuamos adotando a teoria extremada da culpabilidade, ou seja,  vemos, nessa hipótese, um autêntico erro de proibição, que foi ‘tratado’ como erro de tipo”. (HOFFBAUER 1936)
Por fim, a legítima defesa putativa se constitui na conduta do agente que se imaginou na presença da causa de justificação da legítima defesa. Desta forma se configura uma descriminante putativa, que deve ser analisada à luz da teoria limitada da culpabilidade, por adoção expressa do Código Penal, ou seja, se o agente agiu por erro, quanto a pressuposto fático da excludente (legítima defesa), se escusável a culpabilidade será excluída, e se inescusável, responderá na forma culposa, se existir essa previsão no tipo penal.

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