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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Parcialidade na cobertura da morte de Euclides da Cunha

Na manhã de 15 de agosto de 1909, o escritor e jornalista Euclides da Cunha saiu de Copacabana, revólver no bolso, para matar Dilermando de Assis, amante de sua mulher e pai de dois de “seus” filhos; um deles nascera de olhos azuis, “uma espiga de milho no meio de um cafezal”, costumava dizer, segundo relatou na época o escritor Medeiros de Albuquerque, seu amigo pessoal. Naquele domingo chuvoso o autor de “Os Sertões” decidira pôr um ponto final nessa historia e, com este intuito, invadiu, revolver em punho, a casa do cadete, verbalizando a sua intenção de “matar ou morrer”. Então descarregou a arma contra Dilermando, feriu-o apenas, feriu também um irmão do seu desafeto, para tombar morto, após o revide do militar que era exímio atirador, campeão de tiro na Escola de Guerra.
A morte nas circunstâncias descritas, do repórter de O Estado de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras, provocou grande comoção na sociedade, devidamente repercutida pela imprensa amiga. A verdade é que se Dilermando de Assis matou em legítima defesa (o júri o absolveu duas vezes após brilhante defesa do jurista Evaristo de Moraes em parceria com o advogado Delamare Garcia), a imprensa o condenou para sempre. Já no calor dos acontecimentos, destacadas personalidades como Afrânio Peixoto, Barão do Rio Branco e Coelho Neto, dentre outros, em artigos contundentes, traçaram o perfil de um assassino frio, calculista, sem pudor, características atribuídas que se chocavam com os documentos e testemunhas arrolados no inquérito policial. Coelho Neto, por exemplo, assim descrevera os acontecimentos: “E ali jazia o que restava do colosso defensor da natureza, poeta épico dos humildes, demarcador de fronteiras, o grande Euclides, caído em defesa de seu nome puro, morto covardemente, agarrado à honra como os mártires antigos morriam abraçados à cruz”.
Por outro lado colegas do autor de “Os Sertões” tratando do assunto, sem nenhum constrangimento em assumir partido, referiam-se ao homicida como “assassino”, “desprezível”, “asqueroso”, “despudorado”, “viltre”, “fera”, “covarde” “cruel”, “besta”, “cínico”, “selvagem”, “réprobo”, “bárbaro”… sem atentar para os fatos descritos por testemunhas, inicialmente e mais tarde documentos arrolados ao inquérito, bastante esclarecedores. Mas, naquele tempo, a crônica policial desprezava a narrativa para carregar as tintas nos adjetivos; neste caso justificava-se mais ainda por conta do perfil do morto, um ilustre jornalista e escritor, “o semideus abatido a tiros”, conforme definiu o acadêmico Raymundo Magalhães Júnior no livro “Reportagens que Abalaram o Brasil”.
A cobertura de um crime, então, apresentava elementos da crônica literária, priorizava-se o estilo em prejuízo do factual. Essa circunstância de época pesou contra o homicida e a sua amante, a esposa de Euclides, enxergada pela mídia como “adúltera”, “mulher fácil” e outros epítetos menos nobres, compreensíveis no ambiente cultural reinante e o papel submisso e dependente relegado à mulher, agravados pelas circunstâncias da diferença de idade do casal, 17 anos a mais para ela. E nem mesmo as revelações dos maus tratos que Euclides da Cunha infringira à sua esposa e dos longos períodos (até de um ano) que passava fora de casa, abrandaram a pena dos escribas no julgamento para a opinião pública de Ana de Assis.
A verdade é que a imprensa não poupou esforços em apedrejar o casal, pois desde o início, muito antes de Dilermando, o réu, ir ao tribunal, já o condenara por antecipação. Nessa sanha inquisitória inclusive divulgara com estardalhaço, nas proximidades da reunião do júri, um suposto abuso sexual do “criminoso” contra uma adolescente, no quartel, boato que mais tarde se revelaria improcedente.Quando o eminente Evaristo de Moraes exortou os jurados a exercer o seu papel “sem medo da opinião pública”, mirava a imprensa, pois o espírito de corpo até aquele momento prevalecera como um ingrediente a mais a perturbar o processo. Ingrediente emocional que a mídia fizera questão de contrapôr aos fatos.
Dilermando seria absolvido em todas as instâncias jurídicas, mas na mídia só muitos anos depois quando a revista Diretrizes (1941) em reportagem assinada por Francisco Barbosa e a Revista O Cruzeiro (1951), em reportagem de David Nasser com o título “O crime de matar um Deus”, permitiram ao militar aposentado expor a sua versão, sem censura; Nasser inclusive reproduziu em fotografias as feridas de Dilermando de Assis, que até o dia de sua morte carregou quatro balas no corpo: duas que o escritor lhe acertara no fatídico domingo de sua morte e duas que Euclides da Cunha Filho lhe acertara sete anos depois, numa tentativa de vingar o pai. Neste episódio Dilermando, mesmo surpreendido pelas costas, reagiu e em legítima defesa, perante várias testemunhais oculares e premiado mais uma vez pela “sorte”, matou o rapaz. Foi o bastante para a imprensa demonizar em definitivo o “monstro”. Não tinha razão, mas a estas alturas encarava o episódio como uma tragédia de folhetim com tamanha dramaticidade (a mulher adúltera que provoca a morte do marido e filho) de fazer inveja aos mais competentes ficcionistas da literatura brasileira. Neste caso a vida não imitara a arte. Superara-a.
(Artigo de autoria de Nelson Varón Cadena publicado originalmente no Portal da Imprensa em 10/03/2003. Ilustrações de Dilermando de Assis e Euclides da Cunha)

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