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terça-feira, 25 de outubro de 2011

Discussão jurídica: Advogado de defesa x promotor de justiça

Eles estão de lados opostos. De um lado, defendendo um cliente está o advogado, e na outra ponta, representando a sociedade, o promotor de justiça. Conhecido popularmente como acusador, o promotor de justiça do júri não pode mais ser visto sob essa ótica. A observação é do promotor Armando Lúcio Ribeiro, que tem 9 anos de experiência em júris populares.
Segundo ele, o promotor da área criminal tem como missão constitucional fazer a defesa da lei, da sociedade. "Nosso objetivo é de fazer com que o indivíduo que esteja sendo prejudicial à sociedade seja julgado e tenha a pena que o crime cometido exigir", diz.
Ainda segundo Armando Lúcio, a lei penal visa garantir que haja uma convivência social harmoniosa. Quando há a quebra dessa norma, o Ministério Público age para recompor essa harmonia.
"A pena criminal tem três objetivos: retirar o indivíduo de circulação, servir como exemplo para que outra pessoa não cometa crimes e ainda levar o infrator, através do isolamento, a refletir sobre o que fez e o Estado a ressocializá-lo".
Armando Lúcio não considera que seja um paradoxo o fato de um acusado contar com a defesa mesmo nos casos em que há muitas evidências e até provas da culpa desse indivíduo no referido delito. "Como estudioso do Direito, não posso negar que qualquer pessoa que esteja sendo acusada de algo tenha direito à defesa", frisa.
Armando Lúcio vai mais além ao analisar o papel do advogado de defesa. "Muitas vezes a defesa não quer a impunidade, mas apenas o abrandamento da pena, a desqualificação do crime em algo menos grave", explica e acrescenta: "a diferença entre o advogado de defesa e a promotoria é que o primeiro quer algum benefício para o seu cliente a qualquer custo e o promotor quer defender a sociedade".
Ao mesmo tempo, revela, quando o promotor percebe – analisando-se os autos do processo – que o acusado é inocente, ele mesmo pede a absolvição.
Armando Lúcio diz que embora estejam de lados opostos e com idéias contrastantes, os conflitos entre advogado e promotor não devem ultrapassar o campo profissional. "O bom profissional do Direito deve saber que todo e qualquer conflito deve se resumir à atividade profissional", frisa.
O advogado Félix Gomes Neto, 10 anos de profissão, tem opinião parecida com a que foi externada pelo promotor Armando Lúcio. Ele aponta que a existência da defesa só vem a demonstrar a igualdade no tripé promotor-juiz-advogado.
"O advogado tem a incumbência de procurar inocentar o acusado, levando em conta as circunstâncias em que o crime foi cometido, e não de forma isolada, abstrata", relata. Ele acredita que muitas vezes, ao pedir abrandamento de penas para o réu, o advogado não é bem compreendido.
Para Félix Gomes, que já atuou uma vez como assistente de acusação, o relacionamento entre promotor e advogado, em que pese estarem em caminhos contrários no que diz respeito ao exercício do Direito, não pode ser marcado pro intrigas e sim debates ideológicos. "Nada deve passar do campo profissional", diz.
O advogado afirma que essa contrariedade de idéias, de posicionamentos, é o que garante a discussão sobre o direito, em que são analisadas todas as questões que envolvem o tema.
Félix Gomes não considera como sendo um contra-senso o fato de o advogado querer somente beneficiar o réu, já que o promotor – agente acusador – também defende o acusado – ao pedir sua absolvição – ao constatar fatos que comprovem a sua inocência.
"A gente chega a pedir a condenação, o que lutamos muitas vezes é para desqualificar o crime, uma vez que têm que ser levadas em consideração vários fatores. Às vezes, as pessoas são obrigadas a matar para se defender", exemplifica.

Fonte: http://www2.uol.com.br/omossoroense/0411/contraste.htm

sábado, 22 de outubro de 2011

As Mortes de Euclides da Cunha e seu filho

Fonte: Grandes Advogados, Grandes Julgamentos - Pedro Paulo Filho - Depto. Editorial OAB-SP
Evaristo de Moraes
1. Domingo, 15 de agosto de 1909. Na casa de número 214 na Estrada Real de Santa Cruz, na Piedade, no Rio de Janeiro, entra um homem agitado e nervoso. Era Euclides da Cunha, o autor de “Os Sertões”.
Bate palmas, é recebido pelo jovem Dinorah de Assis, a quem manifesta o propósito de avistar o dono da casa, Dilermando de Assis, aspirante do Exército.
Vai logo entrando na sala de visitas. Aí, saca de um revólver e diz: “vim para matar ou morrer!”. Entra no interior da casa e atira duas vezes em Dilermando que, atingido, cai.
Dinorah, vendo o irmão ferido, tenta arrebatar a arma de Euclides. Ouvem-se mais dois disparos. Outro tiro e Dinorah é atingido na coluna vertebral, junto à nuca, que ficaria, posteriormente, inutilizado para o resto da vida.
Dilermando, embora ferido, consegue apanhar o revólver, atira duas vezes sem atingir Euclides. Euclides aperta o gatilho de novo e recebe um tiro de Dilermando que lhe fere o pulso. Duelo de vida e morte. Tiros de ambos os lados e um projétil atinge o pulmão direito de Euclides, que cai morto ao solo.
Assim foi o que se denominou "A Tragédia da Piedade".
2. No dia 4 de maio de 1911, inicia-se o julgamento, perante o Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, de Dilermando de Assis. Seu advogado de defesa foi o grande criminalista Evaristo de Morais. A acusação ficou a cargo do promotor público Pio Duarte.
Depois de fazer a apologia de Euclides da Cunha, o promotor declarou, categoricamente, que o mesmo partiu para a casa onde se achava Dilermando, com a esposa do escritor, Ana, com a evidente intenção de matar ou morrer. O advogado Evaristo de Morais, em aparte, agradeceu aquela confissão do Ministério Público.
Narrou em seguida, o acusador público o diálogo de Euclides com o filho Solon, dizendo ao rapaz que sua mãe era adúltera. Relembrou que ele já havia encontrando a própria mãe em Piedade com o réu, condenando seu comportamento e tentando convencê-la a voltar para a casa da família, onde seria aceita novamente pelo marido, como acontecera anteriormente, mesmo depois de outros episódios de infidelidade.
Declarou o promotor que era direito de Euclides invadir a casa para reaver o filho, que mesmo nascido da união da esposa adúltera com o réu não tivera, porém, sua filiação contestada pelo escritor.
Ressaltou também o depoimento da mulher do escritor, Ana, que, embora elogiasse o marido, chamando-o de homem bom e amoroso, não podia corresponder a essa atenção, pois amava Dilermando, o réu.
Refere-se à confissão de Ana, segundo a qual tivera dois filhos com Dilermando, mas argumenta, longamente, com o fato de ter Euclides o direito de reclamar sua mulher e filhos, responsabilizando Dilermando pelo resultado letal.
Falou que Euclides conhecia os fatos que lhe enodoavam a honra, concluindo que, assim agindo, guardando o segredo de sua desdita, demonstrara que não era um desequilibrado nem um desvairado mas um verdadeiro forte. guardou o segredo de sua mágoa. Demonstrou, assim que não era um desequilibrado nem um desvairado, mas um homem forte. Por último, em nome dos brios do Exército, pediu a condenação de Dilermando de Assis.
3. Pela defesa falou o advogado Delamare Garcia e, em seguida, Evaristo de Moraes. O grande tribuno carioca iniciou a defesa formulando um repto ao promotor público, alegando que, na época, se propalava que o réu Dilermando fora um protegido de sua vítima.
Se a acusação pública conseguisse descobrir nos autos uma frase ou palavra que provasse tal proteção, abondonaria, de imediato, a tribuna de defesa. Se tal ocorresse, não teria aceito o encargo da defesa.
Falou do passado do réu, dizendo que na sua infância fora educado por um tio, conhecido por Quincas Rato. Demonstrou por meio de provas documentais que Dilermando jamais fora socorrido por Euclides da Cunha. Este conhecera Euclides muito tempo depois de ser amante de sua mulher.
Relembrou Santo Agostinho e Jean-Jacques Rousseau, aos quais chamou de sinceros por terem confessado os seus pecados carnais. Quem não teve desses pecados aos 17 anos? Em seguida, sustentou a doutrina que admite o adultério, desde que o seu responsável tenha pouca idade, classificando de convenções sociais as manifestações hipócritas dos que não têm coragem de confessar suas fraquezas.
Demorou-se em divagações acerca da diferença da responsabilidade do adolescente e do adulto, citando vários autores, procurando demonstrar que não se pode falar em sinceridade dos atos de um adolescente, porque, o mesmo nunca é imoral nem moral, mas simplesmente amoral.
Divagou sobre a ação da imprensa que rebaixou o réu a categoria de homicida comum. Negou o direito, defendido pelo promotor, de Euclides da Cunha entrar na casa de Dilermando. Falou, por fim, do exercício de legítima defesa por parte do réu, não só em relação à sua própria pessoa, como em defesa da adúltera.
Justificou a impossibilidade de Dilermando fugir, alegando o ridículo do aspirante a oficial fugir em trajes menores, pés nus, dando as costas ao agressor de sua própria casa. A própria lei – argumentou Evaristo de Moraes – sustenta que não se pode fugir, sempre que essa fuga seja vergonhosa e perigosa.
Fez menção ao tiro de misericórdia que Dilermando teria dado, da soleira da porta, quando Euclides já se achava abatido, alegando que não se pode dimensionar a repulsa de um homem atacado com a exatidão absoluta da medida do ataque, lendo vários autores e doutrinadores.
Analisou a alegada condescendência de Euclides da Cunha com o adultério, alegada pelo promotor, aludindo que o grupo social repelia essa condescendência, que seria um verdadeiro menage à trois, só sustentável quando a família estivesse destruída pelo amor livre.
Argumentou que a condenação, ainda que mínima, seria um absurdo, dentro das circunstâncias. Ou tudo ou nada! Se o Júri reconhecesse a culpabilidade do réu, como assassino perverso, ingrato, miserável, que traiu seu protetor que o condenasse; caso contrário, estava na obrigação moral de absolvê-lo. Evaristo de Moraes conclamou os jurados a exercer a sua nobre função, sem medo da opinião alheia e apreciações de censura ou de aplauso.
O Conselho de Sentença reconheceu a legítima defesa adotada pelos defensores e absolveu Dilermando de Assis, em 5 de maio de 1911. Foi posto em liberdade.
No dia 4 de julho de 1916, Dilermando de Assis, já quite com a Justiça, absolvido por duas vezes no processo de homicídio contra o escritor Euclides da Cunha, chegou ao Cartório do 2º Ofício da 1ª Vara de Órfãos da então capital da República, por volta das 13 horas.
Dirigiu-se ao escrevente Meilhac, inquirindo-o sobre a decisão que fora proferida por parte do juiz, a propósito da tutoria de Manoel Afonso Cunha. Em seguida pediu ao escrevente autorização para tomar conhecimento das declarações feitas naquele processo por Nestor da Cunha e, como a resposta fora afirmativa, começou a ler os autos, apoiado no corrimão da grade que divide em duas partes a sala.
Não havia lido ainda as 15 linhas quando ouviu uma detonação atrás de si, sentindo-se ferido – suas pernas fraquejaram e a vista se lhe turvou. Dilermando de Assis voltou-se para a direita e viu recuando um vulto trajado de escuro com o brilho de metais, deixando parecer que se tratava de um aspirante da Marinha.
Apesar de não ter visto o seu rosto, presumiu logo que se tratava de Euclides da Cunha Filho, filho do famoso escritor, o único aspirante da Marinha que podia tentar contra sua vida.
Lembrando-se de que se tratava de um filho da mulher com quem há pouco se casara, e portanto um irmão de seus próprios filhos, procurou retirar-se, dirigindo-se a passos rápidos para a porta da rua, sem no entanto correr.
Percebeu, porém, que seu agressor continuava a disparar a arma e a feri-lo, sem que ninguém o socorresse, mas, ao contrário, fugiam do local apavorados. Sentindo que sua vida corria sério risco, procurou tirar do bolso de sua calça o revólver Smith and Wesson, calibre 32. Com muito custo, disparou contra seu agressor que ainda estava de revólver em punho. Morria o aspirante Euclides da Cunha Filho que tentara vingar a morte do pai.
O Jornal do Comércio de 28 de setembro daquele ano reproduziu a brilhante defesa de Evaristo de Moraes, que, entre outras alegações, se manifestou: "ora, por mais rigoroso que se pretende ser, julgando o tenente Dilermando de Assis, não se pode desconhecer:
1º) que ele tinha sérios motivos para sentir a sua vida em perigo, quando, já gravíssimamente ferido, buscava a porta e era ainda alvejado pelo agressor, que ninguém continha;
2º) que não se lhe apresentara, ao espírito, naquela ocasião, outro meio de escapar à morte, diverso do que empregou;
3º) que ele não estava apenas emocionado, mas, sim, completamente perturbado, em razão das graves lesões recebidas, das quais quatro, porém, eram mortais.
Não cremos haja aí quem pense na possibilidade de fuga para escapar à agressão. Em primeiro lugar, cumpre ter em vista que o primeiro tiro fora disparado com surpresa e os três seguintes enquanto Dilermando não se tinha armado e estava à mercê do agressor. A fuga não mais evitaria, pois, a efetuação do dano à integridade física do agredido. Mas a lei e a doutrina, em verdade, não aconselhavam a fuga em homem nas condições do acusado”.
Depois de relacionar a opinião de vários doutrinadores nacionais e estrangeiros de que a possibilidade de uma fuga vergonhosa ou perigosa não exclui a legalidade da defesa, mas a defesa deixa de ser legal, se é possível escapar à agressão sem ignomínia ou sem perigo, Evaristo de Moraes acentuou: "no caso do tenente Dilermando de Assis, todas essas ponderações jurídicas são acrescidas de uma importantíssima ponderação médico-psicológica: ele não era no momento de principiar a reagir uma pessoa apenas agredida, um oficial militar apenas atacado por um seu inferior; era, já, um homem mortalmente ferido, em cujo organismo se operavam fenômenos depressivos e perturbadores de inegável gravidade e de alta significação refletindo na sua inteligência e na sua vontade. O acusado tinha lesados os dois pulmões, o diafragma e o fígado; o seu aparelho respiratório, de cuja função depende essencialmente a vida, estava prejudicado; não o estavam menos os órgãos circulatórios, também primordiais na manutenção da harmonia vital. (...)
A condenação do acusado, pela recusa da justificativa da legítima defesa, equivaleria, além de tudo, a um triste conselho de covardia e de vilipêndio pessoal, transmitido aos oficiais do brioso Exército Brasileiro".
A Auditoria de Guerra da Capital Federal, em 27 de setembro de 1916, absolveu o acusado com base na justificativa da legítima defesa, prevista no artigo 26, parágrafo 2º, do Código Penal Militar.
Tendo havido apelação ao Supremo Tribunal Militar, este, em 8 de novembro do mesmo ano, decidiu: "um organismo ferido de morte, em quase desfalecimento, reage irregularmente sobre o que o rodeia e assim sem condições de medir a reação... com os fundamentos aludidos, negando provimento à apelação e confirmando a decisão proferida pelo Conselho de Guerra, mandam que o réu seja posto em liberdade".
As defesas produzidas em favor do tenente Dilermando de Assis nos processos de homicídio de Euclides da Cunha e Euclides da Cunha Filho, perante a Justiça Comum e a Militar, constituem um dos pontos mais altos da grande carreira de advogado criminalista de Evaristo de Moraes.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Furto famélico

Furto famélico: estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa supralegal?

Eduardo Luiz Santos Cabette,

A possibilidade de subsistência alimentar é o requisito mínimo a uma existência humana com dignidade. Segundo Boff  o problema da pobreza e da miséria chega a constituir-se em uma questão "ecológica, na sua dimensão social".
Na realidade desde as primeiras formulações do jusnaturalismo que defendem a existência de normas sobre - humanas a assegurarem certos direitos fundamentais ou naturais, passando por sua "Teoria Dinâmica" preconizada por  John Wild , segundo a qual o ser humano teria certas "tendências" imanentes indeclináveis para a consecução de sua "plenitude"; sempre lugar de destaque indiscutível caberá à alimentação como um dos direitos mais básicos.
Mesmo nas formulações mais contemporâneas de teorias da justiça, não se abre mão de um mínimo ético, de uma reserva básica de direitos que devem ser assegurados igualitariamente para que, a partir daí, se possa construir uma idéia de justiça.  
Assim sendo, o direito de propriedade somente poderá prevalecer enquanto não atinja esses direitos básicos pressupostos à realização da justiça, dentre os quais a subsistência no aspecto da alimentação destaca-se sobremaneira.
O furto, enquanto crime de natureza patrimonial, encontra-se visceralmente ligado a essa problemática. E a figura doutrinariamente denominada de "furto famélico" deve ser sob essa ótica analisada.
O chamado "furto famélico" configura-se quando o furto "é praticado por quem, em estado de extrema penúria, é impelido pela fome, pela inadiável necessidade de se alimentar”.  Em tais circunstâncias não seria justo apenar-se  um ser - humano por seu ato, embora tipicamente previsto. Tal conclusão é inarredável em qualquer concepção humanitária. No entanto, a motivação jurídica dessa solução é que se nos apresenta problemática: a questão seria responder se o que justifica a não punição do "furto famélico" seria a causa excludente de antijuridicidade do estado de necessidade ( art. 24, CP ) ou a simples inexigibilidade de conduta diversa supralegal, de discutível aceitação. Ou seja, é possível adequar o caso concreto à previsão legal ou será necessário, neste caso, utilizar-se de fórmulas extralegais em benefício do agente?
Estado de necessidade
O estado de necessidade é legalmente previsto como uma das causas excludentes de ilicitude no art. 24 do Código Penal Brasileiro, "verbis":
"Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se."
Como se vê, o chamado estado de necessidade nada mais é do que a previsão legal de uma situação de inexigibilidade de conduta diversa, qualificada ou delimitada por certos requisitos.
Tais requisitos são divididos na concepção de Frederico Marques  em "requisitos da situação de necessidade" e "requisitos do fato necessitado".
Seriam “requisitos da situação de necessidade”: “(a) um perigo atual; (b)ameaça a direito próprio ou alheio; (c) situação não provocada voluntariamente pelo agente; (d) inexistência do dever legal de enfrentar o perigo".
“Requisitos do fato necessitado” seriam: “(a) inevitabilidade da ação lesiva; (b) inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado".
Inexigibilidade de conduta diversa supralegal
Aníbal Bruno arrola a exigibilidade de conduta diversa como elemento do conceito de culpabilidade. Aponta o fato de que para que uma conduta seja culpável "é necessário que, nas circunstâncias, seja exigível do agente uma conduta diversa; que a situação total em que o proceder punível se desenvolve não exclua a exigência do comportamento conforme ao Direito, que se pode humanamente reclamar de todo homem normal em condições normais. O comportamento conforme ao Direito não pode ser exigido de maneira absoluta, mas tem de condicionar-se ao poder do sujeito, físico ou moral, de acordo com a situação total do momento."
Segundo Carla Campos Amico, "et al." "a inexigibilidade de conduta diversa é uma causa geral de exclusão de culpabilidade fundada na não censurabilidade de uma conduta, quando não se pode exigir do agente, em determinadas circunstâncias e com base nos padrões sociais vigentes, diferente ação ou omissão." Ela ainda se dividiria em legal e supralegal. "A primeira se encontra delimitada na lei penal; a segunda, embora não delineada no ordenamento jurídico, é utilizada para fundamentar decisão absolutória."
De acordo com esse entendimento haveriam situações em que, independentemente de previsão legal, caberia o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, carecendo legitimidade à punição do agente. Tal se daria como num preenchimento necessário à coerência do sistema em face das suas inevitáveis lacunas provocadas pela absoluta impossibilidade de previsão de todas as possíveis configurações fáticas a serem reguladas pelo Direito.
Neste ponto vale destacar a manifestação de  Francisco de Assis Toledo9:
"Em relação às denominadas causas supralegais de exclusão da ilicitude, silenciou-se a reforma penal brasileira, tal como o Código de 1940. Isso, entretanto, não deverá conduzir o intérprete a afirmar o caráter exaustivo das anteriormente citadas causas legais de justificação, como fez Bataglini, em relação ao Código italiano. É que as causas de justificação, ou normas permissivas, não se restringem, numa estreita concepção positivista do direito, às hipóteses expressas em lei. Precisam igualmente estender-se àquelas hipóteses que, sem limitações legalistas, derivam necessariamente do direito vigente e de suas fontes. Além disso, como não pode o legislador prever todas as mutações das condições materiais e dos valores ético - sociais, a criação de novas causas de justificação, ainda não traduzidas em lei, torna-se uma imperiosa necessidade para a correta e justa aplicação da lei penal."
Assim sendo, a aplicação das causas supralegais seria possível "utilizando-se os métodos integrativos da analogia 'in bonam partem' e dos princípios gerais do Direito, que suprem as lacunas em normas não incriminadoras".
Não obstante, há quem entenda que o conceito de inexigibilidade de conduta diversa supralegal tenha exercido sua função em contextos históricos marcados pela "interpretação demasiadamente restritiva das fórmulas legais, a cunhagem defeituosa das mesmas e, inclusive, a falta de previsão de exculpantes necessárias e já consagradas pela doutrina, ou postuladas em trabalhos de projetos, e político - criminais...". Para esses estudiosos "se torna totalmente desnecessária a busca de uma eximente autônoma de inexigibilidade de conduta diversa, que pode ter atendido a exigências históricas já superadas, mas cuja adoção, hoje, prejudica toda sistemática da culpabilidade."
Consideramos, porém, que o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa supralegal não perdeu sua atualidade, pois que o problema das lacunas do Direito jamais foi ou será sanado, tendendo, ao contrário, a agravar-se pela constante dinamização daquilo que Miguel Reale faz referência em sua teoria como "o mundo da vida" ( "Lebenswelt" ).
Se o que motiva a aversão à inexigibilidade de conduta diversa supralegal é o temor de sua banalização geradora de eventuais impunidades deve-se lembrar a afirmação de Bettiol15 de que um Direito Penal fraco "é apenas o que não pune quando existem todos os pressupostos de uma punição entre os quais o da culpabilidade; quando porém a culpabilidade não subsiste porque não se podia esperar do agente uma motivação normal, seria uma heresia falar ainda de culpa e aplicar pena." E acrescente mais à frente: "A doutrina da não exigibilidade é uma válvula que permite a um sistema de normas respirar em termos humanos."
Conclusão
Partindo, portanto, de nossa aceitação da inexigibilidade de conduta diversa supralegal como causa exculpante, resta-nos concluir acerca da melhor adequabilidade dos casos de "furto famélico" a esta ou ao estado de necessidade.
É freqüente encontrar na doutrina alusões ao "furto famélico" entendido como uma modalidade de estado de necessidade. Neste sentido a assertiva de Noronha: "O 'estado de necessidade', tal como ocorre no 'furto famélico', exclui a antijuridicidade." Idêntico posicionamento é encontrável  na jurisprudência.
Sem embargo desse respeitável entendimento, consideramos que os casos de "furto famélico" são melhor adequáveis à figura da inexigibilidade de conduta diversa supralegal do que ao estado de necessidade.
Como já foi destacado linhas volvidas, o estado de necessidade nada mais é do que uma previsão legal de um caso de inexigibilidade de conduta diversa. Entretanto, a noção de inexigibilidade de conduta diversa não se resume ao estado de necessidade tal qual legalmente moldado. Este é apenas uma forma qualificada ou especificada legalmente por uma série de requisitos, cuja falta de qualquer um desnatura a excludente.
O "furto famélico" não apresentaria dificuldades em adequar-se àqueles chamados por Frederico Marques de "requisitos da situação de necessidade" ( perigo atual, ameaça a direito próprio ou alheio, situação não provocada voluntariamente pelo agente e inexistência do dever legal de enfrentar o perigo ).   Mas o mesmo não ocorreria com o primeiro dos "requisitos do fato necessitado",  elencados pelo mesmo autor ( inevitabilidade  da ação lesiva e inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado ).
A "inevitabilidade da ação lesiva" em nossa concepção, estaria prejudicada no caso do "furto famélico", desnaturando destarte o estado de necessidade.
É lição de Nelson Hungria quanto ao estado de necessidade, que "exige o Código que o perigo não possa ser evitado por 'outro modo', isto é, sem o sacrifício ( total ou parcial ) do direito alheio. O estado de necessidade, contrariamente ao que ocorre com a 'legítima defesa', é, eminentemente, 'subsidiário': não existe se o agente podia conjurar o perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem."
Nos casos de "furto famélico" estariam em jogo os direitos à incolumidade física ( saúde ) e até à vida do agente. Mas se procurarmos pensar em casos tais que indiquem a "inevitabilidade da ação lesiva" ( furto ), ou seja, casos em que a atuação do agente não se poderia dar por outro modo a fim de evitar o perigo à sua saúde ou vida ocasionado pela fome, recairemos em situações - limite nas quais as condições físicas do sujeito seriam tão precárias que na verdade tornariam impossível a ele a prática da subtração.
Supondo que o autor esteja em condições de perpetrar a subtração, forçoso é reconhecer que sempre lhe seria possível escolher caminhos outros à solução de seu infortúnio que não a subtração  dos bens alheios. Por exemplo, entre outros, o oferecimento de serviços em troca da alimentação ou o simples apelo ao auxílio caritativo. Diferentemente da legítima defesa, no estado de necessidade é preciso que não haja possibilidade de evitar o perigo de "outro modo".
Dessa maneira, restaria prejudicada a aplicação do estado de necessidade ao furto famélico por carência de um dos seus requisitos. Mas não seria por isso que o agente deveria ser responsabilizado criminalmente, pois como adverte Aníbal Bruno: "Geralmente, estes casos de não exigibilidade de conduta diversa se resolvem em situações de necessidade, embora não se revistam daquelas condições que excluem, segundo a lei, no estado de necessidade, a ilicitude do fato. A razão da não exigibilidade cobre precisamente aqueles casos que a ausência dessas condições particulares impede que se classifiquem como o estado de necessidade do Código."
No "furto famélico" a pedra de toque não está no "fato" de haver a possibilidade de evitar o perigo por "outro modo" que não a ação lesiva, a configurar um "estado de necessidade" em que o agente não tem à sua disposição outros meios e é "obrigado" a agir de maneira lesiva para que não seja prejudicado em seu direito. No estado de necessidade a "escolha" do agente opera-se somente quanto a agir de maneira lesiva e fazer prevalecer o seu direito ou simplesmente abdicar de seu direito. Se escolher a defesa de seu direito, somente um caminho lhe é possível: a ação lesiva do direito alheio, nenhum outro.
Por isso o "furto famélico" não se pode adequar ao estado de necessidade. Nele o agente não escolhe entre seu direito e um único caminho de salvação. No "furto famélico a escolha do agente é entre duas ou mais possibilidade de salvaguarda do seu direito. Por exemplo: a ação lesiva e o pedido de ajuda; ou, a ação lesiva e a barganha de um serviço etc. Não há uma relação de exclusão entre o não lesar e o direito do agente, ou seja, no "furto famélico" é possível ao sujeito escolher não atacar o patrimônio alheio e ainda assim procurar preservar seu direito à alimentação ( saúde e vida ) por "outros modos".
A inexigibilidade de conduta diversa apresenta-se sob o aspecto de que a escolha entre as condutas possíveis nos casos de "furto famélico" não poderia ser imposta ao sujeito sob pena de lesão à dignidade da pessoa humana. Ao ser - humano não se pode compelir à humilhação para a satisfação de suas necessidades básicas como a alimentação. Certamente o ato de furtar não é digno, mas o que não se pode pretender é obrigar o homem a uma determinada escolha que avilte seus sentimentos íntimos de orgulho e honra. O que seria inadmissível, indigno e odioso, muito mais que o ato de furtar, seria o obrigar o homem à humilhação de pedir alimento ou trabalhar a troco dele. Se alguém escolher livremente essa conduta nada haverá que seja desabonador, mas não se pode aceitar a obrigação ao ser - humano de assim agir, pois para muitos é mais aviltante o pedir aquilo que é básico ( alimento ), do que tomá-lo para si num ato de luta pela sobrevivência inerente aos seres vivos.
Finalizando, podemos concluir que o reconhecimento do "furto famélico" como um caso de inexigibilidade de conduta diversa supralegal seria um tributo ao Princípio Fundamental Constitucional da "dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, III, da Constituição Federal.

Furto famélico: estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa supralegal?

Eduardo Luiz Santos Cabette,

A possibilidade de subsistência alimentar é o requisito mínimo a uma existência humana com dignidade. Segundo Boff1 o problema da pobreza e da miséria chega a constituir-se em uma questão "ecológica, na sua dimensão social".
Na realidade desde as primeiras formulações do jusnaturalismo que defendem a existência de normas sobre - humanas a assegurarem certos direitos fundamentais ou naturais, passando por sua "Teoria Dinâmica" preconizada por  John Wild2, segundo a qual o ser humano teria certas "tendências" imanentes indeclináveis para a consecução de sua "plenitude"; sempre lugar de destaque indiscutível caberá à alimentação como um dos direitos mais básicos.
Mesmo nas formulações mais contemporâneas de teorias da justiça, não se abre mão de um mínimo ético, de uma reserva básica de direitos que devem ser assegurados igualitariamente para que, a partir daí, se possa construir uma idéia de justiça. 3
Assim sendo, o direito de propriedade somente poderá prevalecer enquanto não atinja esses direitos básicos pressupostos à realização da justiça, dentre os quais a subsistência no aspecto da alimentação destaca-se sobremaneira.
O furto, enquanto crime de natureza patrimonial, encontra-se visceralmente ligado a essa problemática. E a figura doutrinariamente denominada de "furto famélico" deve ser sob essa ótica analisada.
O chamado "furto famélico" configura-se quando o furto "é praticado por quem, em estado de extrema penúria, é impelido pela fome, pela inadiável necessidade de se alimentar”. 4 Em tais circunstâncias não seria justo apenar-se  um ser - humano por seu ato, embora tipicamente previsto. Tal conclusão é inarredável em qualquer concepção humanitária. No entanto, a motivação jurídica dessa solução é que se nos apresenta problemática: a questão seria responder se o que justifica a não punição do "furto famélico" seria a causa excludente de antijuridicidade do estado de necessidade ( art. 24, CP ) ou a simples inexigibilidade de conduta diversa supralegal, de discutível aceitação. Ou seja, é possível adequar o caso concreto à previsão legal ou será necessário, neste caso, utilizar-se de fórmulas extralegais em benefício do agente?
Estado de necessidade
O estado de necessidade é legalmente previsto como uma das causas excludentes de ilicitude no art. 24 do Código Penal Brasileiro, "verbis":
"Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se."
Como se vê, o chamado estado de necessidade nada mais é do que a previsão legal de uma situação de inexigibilidade de conduta diversa, qualificada ou delimitada por certos requisitos.
Tais requisitos são divididos na concepção de Frederico Marques5 em "requisitos da situação de necessidade" e "requisitos do fato necessitado".
Seriam “requisitos da situação de necessidade”: “(a) um perigo atual; (b)ameaça a direito próprio ou alheio; (c) situação não provocada voluntariamente pelo agente; (d) inexistência do dever legal de enfrentar o perigo".
“Requisitos do fato necessitado” seriam: “(a) inevitabilidade da ação lesiva; (b) inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado".
Inexigibilidade de conduta diversa supralegal
Aníbal Bruno arrola a exigibilidade de conduta diversa como elemento do conceito de culpabilidade. Aponta o fato de que para que uma conduta seja culpável "é necessário que, nas circunstâncias, seja exigível do agente uma conduta diversa; que a situação total em que o proceder punível se desenvolve não exclua a exigência do comportamento conforme ao Direito, que se pode humanamente reclamar de todo homem normal em condições normais. O comportamento conforme ao Direito não pode ser exigido de maneira absoluta, mas tem de condicionar-se ao poder do sujeito, físico ou moral, de acordo com a situação total do momento."
Segundo Carla Campos Amico, "et al." "a inexigibilidade de conduta diversa é uma causa geral de exclusão de culpabilidade fundada na não censurabilidade de uma conduta, quando não se pode exigir do agente, em determinadas circunstâncias e com base nos padrões sociais vigentes, diferente ação ou omissão." Ela ainda se dividiria em legal e supralegal. "A primeira se encontra delimitada na lei penal; a segunda, embora não delineada no ordenamento jurídico, é utilizada para fundamentar decisão absolutória."
De acordo com esse entendimento haveriam situações em que, independentemente de previsão legal, caberia o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, carecendo legitimidade à punição do agente. Tal se daria como num preenchimento necessário à coerência do sistema em face das suas inevitáveis lacunas provocadas pela absoluta impossibilidade de previsão de todas as possíveis configurações fáticas a serem reguladas pelo Direito.
Neste ponto vale destacar a manifestação de  Francisco de Assis Toledo9:
"Em relação às denominadas causas supralegais de exclusão da ilicitude, silenciou-se a reforma penal brasileira, tal como o Código de 1940. Isso, entretanto, não deverá conduzir o intérprete a afirmar o caráter exaustivo das anteriormente citadas causas legais de justificação, como fez Bataglini, em relação ao Código italiano. É que as causas de justificação, ou normas permissivas, não se restringem, numa estreita concepção positivista do direito, às hipóteses expressas em lei. Precisam igualmente estender-se àquelas hipóteses que, sem limitações legalistas, derivam necessariamente do direito vigente e de suas fontes. Além disso, como não pode o legislador prever todas as mutações das condições materiais e dos valores ético - sociais, a criação de novas causas de justificação, ainda não traduzidas em lei, torna-se uma imperiosa necessidade para a correta e justa aplicação da lei penal."
Assim sendo, a aplicação das causas supralegais seria possível "utilizando-se os métodos integrativos da analogia 'in bonam partem' e dos princípios gerais do Direito, que suprem as lacunas em normas não incriminadoras".
Não obstante, há quem entenda que o conceito de inexigibilidade de conduta diversa supralegal tenha exercido sua função em contextos históricos marcados pela "interpretação demasiadamente restritiva das fórmulas legais, a cunhagem defeituosa das mesmas e, inclusive, a falta de previsão de exculpantes necessárias e já consagradas pela doutrina, ou postuladas em trabalhos de projetos, e político - criminais...". Para esses estudiosos "se torna totalmente desnecessária a busca de uma eximente autônoma de inexigibilidade de conduta diversa, que pode ter atendido a exigências históricas já superadas, mas cuja adoção, hoje, prejudica toda sistemática da culpabilidade."
Consideramos, porém, que o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa supralegal não perdeu sua atualidade, pois que o problema das lacunas do Direito jamais foi ou será sanado, tendendo, ao contrário, a agravar-se pela constante dinamização daquilo que Miguel Reale faz referência em sua teoria como "o mundo da vida" ( "Lebenswelt" ).
Se o que motiva a aversão à inexigibilidade de conduta diversa supralegal é o temor de sua banalização geradora de eventuais impunidades14 deve-se lembrar a afirmação de Bettiol15 de que um Direito Penal fraco "é apenas o que não pune quando existem todos os pressupostos de uma punição entre os quais o da culpabilidade; quando porém a culpabilidade não subsiste porque não se podia esperar do agente uma motivação normal, seria uma heresia falar ainda de culpa e aplicar pena." E acrescente mais à frente: "A doutrina da não exigibilidade é uma válvula que permite a um sistema de normas respirar em termos humanos."
Conclusão
Partindo, portanto, de nossa aceitação da inexigibilidade de conduta diversa supralegal como causa exculpante, resta-nos concluir acerca da melhor adequabilidade dos casos de "furto famélico" a esta ou ao estado de necessidade.
É freqüente encontrar na doutrina alusões ao "furto famélico" entendido como uma modalidade de estado de necessidade. Neste sentido a assertiva de Noronha: "O 'estado de necessidade', tal como ocorre no 'furto famélico', exclui a antijuridicidade." Idêntico posicionamento é encontrável  na jurisprudência.
Sem embargo desse respeitável entendimento, consideramos que os casos de "furto famélico" são melhor adequáveis à figura da inexigibilidade de conduta diversa supralegal do que ao estado de necessidade.
Como já foi destacado linhas volvidas, o estado de necessidade nada mais é do que uma previsão legal de um caso de inexigibilidade de conduta diversa. Entretanto, a noção de inexigibilidade de conduta diversa não se resume ao estado de necessidade tal qual legalmente moldado. Este é apenas uma forma qualificada ou especificada legalmente por uma série de requisitos, cuja falta de qualquer um desnatura a excludente.
O "furto famélico" não apresentaria dificuldades em adequar-se àqueles chamados por Frederico Marques de "requisitos da situação de necessidade" ( perigo atual, ameaça a direito próprio ou alheio, situação não provocada voluntariamente pelo agente e inexistência do dever legal de enfrentar o perigo ). 19 Mas o mesmo não ocorreria com o primeiro dos "requisitos do fato necessitado",  elencados pelo mesmo autor ( inevitabilidade  da ação lesiva e inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado ).
A "inevitabilidade da ação lesiva" em nossa concepção, estaria prejudicada no caso do "furto famélico", desnaturando destarte o estado de necessidade.
É lição de Nelson Hungria quanto ao estado de necessidade, que "exige o Código que o perigo não possa ser evitado por 'outro modo', isto é, sem o sacrifício ( total ou parcial ) do direito alheio. O estado de necessidade, contrariamente ao que ocorre com a 'legítima defesa', é, eminentemente, 'subsidiário': não existe se o agente podia conjurar o perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem."
Nos casos de "furto famélico" estariam em jogo os direitos à incolumidade física ( saúde ) e até à vida do agente. Mas se procurarmos pensar em casos tais que indiquem a "inevitabilidade da ação lesiva" ( furto ), ou seja, casos em que a atuação do agente não se poderia dar por outro modo a fim de evitar o perigo à sua saúde ou vida ocasionado pela fome, recairemos em situações - limite nas quais as condições físicas do sujeito seriam tão precárias que na verdade tornariam impossível a ele a prática da subtração.
Supondo que o autor esteja em condições de perpetrar a subtração, forçoso é reconhecer que sempre lhe seria possível escolher caminhos outros à solução de seu infortúnio que não a subtração  dos bens alheios. Por exemplo, entre outros, o oferecimento de serviços em troca da alimentação ou o simples apelo ao auxílio caritativo. Diferentemente da legítima defesa, no estado de necessidade é preciso que não haja possibilidade de evitar o perigo de "outro modo".
Dessa maneira, restaria prejudicada a aplicação do estado de necessidade ao furto famélico por carência de um dos seus requisitos. Mas não seria por isso que o agente deveria ser responsabilizado criminalmente, pois como adverte Aníbal Bruno: "Geralmente, estes casos de não exigibilidade de conduta diversa se resolvem em situações de necessidade, embora não se revistam daquelas condições que excluem, segundo a lei, no estado de necessidade, a ilicitude do fato. A razão da não exigibilidade cobre precisamente aqueles casos que a ausência dessas condições particulares impede que se classifiquem como o estado de necessidade do Código."
No "furto famélico" a pedra de toque não está no "fato" de haver a possibilidade de evitar o perigo por "outro modo" que não a ação lesiva, a configurar um "estado de necessidade" em que o agente não tem à sua disposição outros meios e é "obrigado" a agir de maneira lesiva para que não seja prejudicado em seu direito. No estado de necessidade a "escolha" do agente opera-se somente quanto a agir de maneira lesiva e fazer prevalecer o seu direito ou simplesmente abdicar de seu direito. Se escolher a defesa de seu direito, somente um caminho lhe é possível: a ação lesiva do direito alheio, nenhum outro.
Por isso o "furto famélico" não se pode adequar ao estado de necessidade. Nele o agente não escolhe entre seu direito e um único caminho de salvação. No "furto famélico a escolha do agente é entre duas ou mais possibilidade de salvaguarda do seu direito. Por exemplo: a ação lesiva e o pedido de ajuda; ou, a ação lesiva e a barganha de um serviço etc. Não há uma relação de exclusão entre o não lesar e o direito do agente, ou seja, no "furto famélico" é possível ao sujeito escolher não atacar o patrimônio alheio e ainda assim procurar preservar seu direito à alimentação ( saúde e vida ) por "outros modos".
A inexigibilidade de conduta diversa apresenta-se sob o aspecto de que a escolha entre as condutas possíveis nos casos de "furto famélico" não poderia ser imposta ao sujeito sob pena de lesão à dignidade da pessoa humana. Ao ser - humano não se pode compelir à humilhação para a satisfação de suas necessidades básicas como a alimentação. Certamente o ato de furtar não é digno, mas o que não se pode pretender é obrigar o homem a uma determinada escolha que avilte seus sentimentos íntimos de orgulho e honra. O que seria inadmissível, indigno e odioso, muito mais que o ato de furtar, seria o obrigar o homem à humilhação de pedir alimento ou trabalhar a troco dele. Se alguém escolher livremente essa conduta nada haverá que seja desabonador, mas não se pode aceitar a obrigação ao ser - humano de assim agir, pois para muitos é mais aviltante o pedir aquilo que é básico ( alimento ), do que tomá-lo para si num ato de luta pela sobrevivência inerente aos seres vivos.
Finalizando, podemos concluir que o reconhecimento do "furto famélico" como um caso de inexigibilidade de conduta diversa supralegal seria um tributo ao Princípio Fundamental Constitucional da "dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, III, da Constituição Federal.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Teoria diferenciadora do estado de necessidade

Por: Heloisa Gaspar Martins Tavares
A teoria diferenciadora a respeito do estado de necessidade teve origem na Alemanha em 1927.
O ordenamento jurídico alemão previa duas formas de estado de necessidade: a) estado de necessidade jurídico-penal: causa de exclusão da culpabilidade (art. 54 do revogado Código Penal alemão); b) estado de necessidade jurídico-civil: causa de exclusão de ilicitude (arts. 228 e 904 do Código Civil alemão).
Depois da histórica decisão de 11.03.1927, proferida pela primeira câmara do Tribunal de Reich, admitindo um aborto médico para salvar a vida da gestante, a doutrina e jurisprudência alemã passou a construir, sob influências de idéias jusnaturalistas, o estado de necessidade justificante "supralegal", com fundamento no princípio da ponderação de bens e deveres. Esse princípio já se encontrava na legislação civil alemã, para atos defensivos ou agressivos dirigidos contra coisas. Pondera-se os bens e deveres em conflito; o que for reputado de menor valor pode ser licitamente sacrificado para proteção do de maior valor.
O princípio da ponderação de bens e deveres tem incidência apenas no estado de necessidade justificante, posto não conseguir fundamentar a impunibilidade do fato necessário quando esses bens e deveres sejam de igual valor (vida contra vida, no exemplo da tábua de salvação) ou quando o bem sacrificado seja maior do que o protegido. De sorte que nestas últimas situações, que traduzem comportamento ilícitos, incidem a excludente de culpabilidade – estado de necessidade exculpante. Daí a necessidade do tratamento bifronte dado ao estado de necessidade pela teoria diferenciadora.
Foi nessa época que a jurisprudência alemã passou a admitir, mesmo sem amparo legal, a exclusão da antijuridicidade em determinadas situações de estado de necessidade, consagrando a denominada "teoria diferenciadora", acolhendo duas formas de estado de necessidade, ulteriormente, incorporadas ao texto legal, isto é, estado de necessidade justificante (excludente de ilicitude) e estado de necessidade exculpante (excludente de culpabilidade), assim elucidadas por Assis Toledo:
"o primeiro se configura quando o agente comete o ato para afastar, de si ou de outrem, perigo inevitável para a vida, para o corpo, para a liberdade, para a honra, para a propriedade ou para um outro bem jurídico, se, na ponderação dos interesses conflitantes, o interesse protegido sobrepujar sensivelmente aquele que foi sacrificado pelo ato necessário. O segundo se verifica quando o agente realiza uma ação ilícita para afastar de si, de um parente ou de uma pessoa que lhe é próxima, perigo não evitável, por outro modo, para o corpo, para a vida ou para a liberdade, excluída a hipótese em que o mesmo agente esteja obrigado, por uma especial relação jurídica, a suportar tal perigo e também a de que este último tenha sido por ele provocado". [3] (grifo nosso)
Assim, alguém que invade um domicílio para salvar uma criança que está se afogando na piscina (sacrifício de valor menor para salvar valor maior) estará amparado pelo estado de necessidade como excludente de ilicitude. Já o exemplo clássico do caso de dois náufragos que disputam uma tábua de salvação que suporta apenas uma pessoa e um náufrago mata o outro (sacrifício de valores iguais) para salvar-se de uma situação de perigo atual, que não provocou por sua vontade, caracteriza estado de necessidade exculpante.
Atualmente o Código Penal alemão, vigente desde 1975, adota a teoria diferenciadora, assim como o Código Penal espanhol (Lei Orgânica n. 10/95).