Páginas

sábado, 1 de outubro de 2011

DIREITO DE PUNIR: LEGITIMIDADE DO ESTADO, E NÃO DOS PARTICULARES

Cristiani Pereira de Morais

O direito de punir pertence única e exclusivamente ao Estado. No entanto, percebe- se que no dia- a- dia ocorrem inúmeros casos de punições dadas por particulares aos acusados, sendo que essas constituem a vingança privada, a qual, vale salientar, contrapõe- se  ao que permite o nosso ordenamento jurídico, sendo, inclusive, além de ilegal, inconstitucional, pois não respeita preceitos como: o acusado possui o direito à ampla defesa e ao contraditório (art. 5°, LV, da Constituição Federal de 1988); ele só será considerado culpado quando houver uma sentença transitada em julgado (art. 5°, LVII, da CF).

Mediante esse conflito entre quem possui o direito de punir, na teoria e na prática, procuramos abordar, no presente trabalho, os fundamentos desse direito, deixando claro que na sociedade de direito o detentor legítimo do jus puniendi é o Estado. Exemplificamos apontando casos de vingança privada em nosso país, enfatizando a ilegalidade e a inconstitucionalidade das punições aplicadas por particulares, os quais por se verem diante de uma impunidade se acham no direito de praticar tais atos repugnantes.

Tais atos devem, não há dúvidas, ser abolidos de nosso sistema jurídico e de nossa sociedade, primando-se sempre pelos direitos fundamentais dos seres humanos, e não pelo sentimento vingativo que nos contamina e transfigura a moral reguladora da vida social, pedra angular  Do Contrato Social.

Em virtude da observação desse paradoxo em nossa sociedade, principalmente, decidimos abordar esse tema, fazendo uma pesquisa qualitativa, a qual contribuiu para que vislumbrássemos que o Estado é o único detentor do direito de punir, sendo assim, os casos de vingança privada são, indubitavelmente, ilegais, como afirmamos anteriormente.

  DIREITO DE PUNIR: CONCEITO E LIMITES

O direito de punir que pode ser definido, segundo Marques (1991 apud MIRABETE, 2007) como “[...] o direito que tem o Estado de aplicar a pena cominada no preceito secundário da norma penal incriminadora, contra quem praticou a ação ou omissão descrita no preceito primário, causando um dano ou lesão jurídica” não é absoluto, pois o mesmo é limitado, por exemplo, pelos seguintes dispositivos constitucionais: “[...] não há crime sem lei anterior que o defina” (art.5°, XXXIX); “[...] a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art.5°, XXV); “[...] ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (art.5°, LIII) e “[...] ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (art.5°, LIV).

Jus puniendi in abstracto e jus puniendi in concreto: o Jus puniendi in abstracto é o direito de punir que ainda não foi utilizado no caso concreto, ou seja, que ainda não foi aplicado porque não houve a transgressão da norma penal. Porém, quando essa transgressão ocorre, surge o jus puniendi in concreto, no qual o Estado tem o dever de infligir a pena ao autor da conduta proibida.

QUEM É O DETENTOR DO DIREITO DE PUNIR: O ESTADO OU O ENTE PRIVADO?

O Estado protege inúmeros bens jurídicos, dentre eles o direito à vida, à honra, à integridade física, os quais são tutelados pelas normas penais. Vale ressaltar que esses bens são tutelados em função da vida social e que o direito de punir os infratores corresponde à sociedade, mas como essa é uma entidade abstrata, cabe ao Estado reprimir as infrações penais, por meio de seus órgãos competentes.
Logo, o Estado é indubitavelmente o único titular do direito de punir, sendo que ocorrem inúmeros casos de punição aplicada por particulares, o que nada mais é do que uma ilegalidade e inconstitucionalidade. Em seu art. 144 a Constituição assim dispõe: “A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e do patrimônio, [...]”. Verifica- se aqui que o direito de punir não é só um direito, mas também é um dever, o qual só pode realizar-se através do processo.

Fases processuais: devemos ressaltar que em virtude de ao longo da história as penas terem sido aplicadas pelo ente privado e/ou estatal existem três fases processuais, as quais, segundo Duarte (2008) é: a da vingança privada (período de sangue) início da civilização na qual as pessoas eram responsáveis pelo castigo do ofensor, matando o, geralmente; a da justiça privada (ainda marcada pelo apogeu da vítima, entretanto, nesta fase, se a esta quisesse punir o seu ofensor, teria de procurar o poder público, oferecer uma queixa, trazer provas de responsabilidade da culpa do mesmo e demonstrar ao poder público que a punição que ela desejava impor guardava um limite diante do que era tolerável pelo poder citado); a fase do processo penal, nos idos dos séculos XVIII e XIX, como sendo de interesse e controle público (nessa fase o Estado toma para si a responsabilidade de aplicar as penas).

FUNDAMENTOS DO DIREITO DE PUNIR (TEORIAS LEGITIMADORAS DO DIREITO DE PUNIR)

No período moderno, temos a teoria de caráter retributivo e a de caráter preventivo, sendo que a primeira corrente basicamente defendia que as sanções seriam aplicadas para retribuir o mal que aquela pessoa fez; são autores que apoiaram essa primeira teoria: Kant, Hegel, Mezger, Binding. Já a segunda teoria acrescentou como uma utilidade no meio social , a intimidação da comunidade, de tal forma que ela veja o exemplo (as punições aos infratores da norma) e se abstenha de cometer tal infração; são autores que defenderam essa última teoria: Beccaria, Feuerbach, entre outros.
Dentre inúmeras teorias acerca do direito de punir destaca- se a teoria de Beccaria (2007), o qual se volta ao contrato social e diz que os homens com o passar do tempo decidiram abrir mão de parcela de sua liberdade para que o Estado garantisse alguns de seus direitos. Em face desse contrato, aquele que o descumprisse seria penalizado, recaindo nesse momento a sanção estatal e a aplicação da pena.
Além de Beccaria, destacase Foulcault (2004), que assim como aquele, fala sobre os instrumentos utilizados antes do século XVIII para castigar os acusados (tortura, pena de morte, entre outros); continuando, Foucault disserta que no fim do século XVIII já se requeria penas mais brandas, até mesmo porque os ‘crimes de sangue’ estavam reduzindo , sendo necessária a adequação proporcional da pena ao crime cometido. Com efeito, essa questão é de extrema relevância porque a partir desse momento não só as penas são abrandadas, como a tutela dos diretos fundamentais e a aplicação das penas, por parte do Estado, fortalecem-se.
O direito de punir do estado e a justiça com as próprias mãos: como já foi dito anteriormente, o titular do direito de punir é o Estado, o qual é responsável pela segurança e pela ordem jurídica, sendo que, como já citado na introdução ocorrem freqüentemente casos em que alguém pune outrem. Porém, deve- se observar que essa pessoa que agiu no lugar do Estado deve ser responsabilizada e punida, sendo que há, inclusive, no Código Penal um artigo que regula a justiça com as próprias mãos. Vejamo-lo:
Fazer justiça com as próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:
Pena – detenção, de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente
à violência.
Parágrafo único. Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa. (art. 345, CP) Como vemos, a justiça pelas próprias mãos constitui crime e que se alguém se sente injustiçado deve procurar os órgãos do Estado e requerer aos mesmos que proteja o seu direito ofendido, mas não aplicar a pena com ‘suas mãos’.

CASOS DE VINGANÇA PRIVADA; DE JUSTIÇA COM AS PRÓPRIAS MÃOS; OU AINDA ENSEJO DE CONDENAR ALGUÉM ANTES MESMO DE HAVER O DEVIDO PROCESSO LEGAL

No texto de Trezzi (2006) temos um exemplo de vingança privada, no qual uma mãe que teve seu filho molestado por um jovem acaba matando este. No artigo temos ainda que essa mãe foi absolvida, no entanto, o Ministério Público pretendia recorrer da decisão, isso porque por mais que se alegasse legítima defesa, essa não se configurava (o jovem sequer estava armado, além disso, houve excesso por parte da mulher6); deve-se acrescentar ainda que, se considerarmos que houve um homicídio mediante forte emoção, ela não poderá ser absolvida, pois o CP em seu art.121,§1°, apenas dispõe que nesses casos deve haver redução da pena, e não exclusão da mesma.

(VINGANÇA PRIVADA OU JUSTIÇA COM AS PROPRIAS MÃOS)

 Já no texto de DUARTE (2008) podemos encontrar o caso do advogado Yoran Sheftel, que sofreu agressões, por defender Ivan Demjanjuk, acusado de ser um nazista que tinha matado várias pessoas. Após um calvário processual, o defensor conseguiu provar a inocência de seu constituinte, descobrindo-se, ao final, que Ivan, O Terrível, era outra pessoa, outro Ivan, que não aquele acusado inicialmente.

Merece destaque também o recente caso de Isabela Nardoni, que chocou inúmeros brasileiros, no mês de março do ano de 2008, os quais condenaram o casal Nardoni, antes mesmo de serem feitas as investigações e de ter havido o processo legal (garantido na CF, art. 5°, LIV); além disso, inúmeras pessoas chegaram a jogar pedras, dentre outros objetos nos dois, o que nos mostra que o desejo de fazer justiça com as próprias mãos está presente, infelizmente, em nossa sociedade, a qual se deixa levar pela emoção e pretende, parece-nos, voltar ao tempo da vingança privada. (ENSEJO DE CONDENAÇÃO)

O linchamento constitui uma das formas de justiça com as próprias mãos, assim como justiça popular, as quais vão de encontro à justiça oficial estatal, que proíbe esses atos bárbaros. Pode-se verificar no texto de Sinhoretto (2008) uma discussão sobre o linchamento e o que as pessoas de pequenas comunidades acham acerca desse assunto, destacando-se o que os moradores de Vila Real acham sobre o linchamento que ocorreu em 1989 no lugar em que habitavam: com base nos vários relatos, podemos destacar que grande parte dos habitantes desse local reconhece que tais atos não deveriam acontecer, não são corretos, mas dizem que entendem, por exemplo, o que a família de uma garota estuprada sente; sendo, assim, passível de compreensão, e não punição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após destacar alguns casos de punição praticada por particulares, em detrimento ao poder do Estado na aplicação das sanções penais, percebemos que hodiernamente a vingança privada principalmente está sendo utilizada de tal forma que ela não infringe só a lei e a Carta Magna, mas, sobretudo, culturalmente valores supremos como a vida, a dignidade da pessoa humana independentemente de quem seja esse ser humano, se é um estuprador ou não e os sentimentos e valores que unem uma sociedade e permitem que ela se estabeleça e perdure para que se mantenha o Contrato Social.

A questão central desse trabalho que é a legítima titularidade do direito de punir por parte do Estado e os conflitos internos concernentes à vingança privada e à justiça pelas próprias mãos constituem um tema relevante o qual não se pretendeu esgotar, nesta revisão de literatura, mas apontar para uma problematização que perpassa a crise das instituições sociais, da democracia representativa, das questões jurídico sociais, sobretudo, a crença no Estado de Direito como o salvaguardo da condição humana.

Destarte, o direito de punir pertence única e exclusivamente ao Estado, a fim de se manter o Contrato Social, previamente acordado. Portanto, a vingança privada contrapõe-se ao que permite o nosso ordenamento jurídico, sendo, inclusive, além de ilegal, inconstitucional, como já supracitado.

Unir, portanto, o que o direito permite e o que o interesse social prescreve a fim de que a justiça e a utilidade do contrato não se encontrem divididas, como assevera Rousseau9. A ordem social é um direito sagrado, fundamentado nas convenções sociais.

Rousseau (2006, p. 20) aponta a importância do respeito à legalidade, posto não ser a mesma natural, mas social, o que demanda um órgão regulador, um contrato baseado na força comum, posto que “[...] a menor modificação [nas cláusulas do contrato] as tornaria vãs e sem nenhum efeito; de sorte que, com quanto, jamais tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes [...] tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social [...].”

Mediante momentos de conflitos, de crise, em que se concerne quem possui o direito de punir, na teoria e na prática, procuramos apontar que o detentor legítimo do jus puniendi é o Estado.

Exemplificamos apontando casos de vingança privada em nosso país, enfatizando a ilegalidade e a inconstitucionalidade das punições aplicadas por particulares, os quais por se verem diante de uma impunidade se acham no direito de praticar atos ilegais, que devem, não há dúvidas, ser abolidos de nosso sistema jurídico e de nossa sociedade; Primando-se sempre pelos direitos fundamentais dos seres humanos, e não pelo sentimento vingativo que nos contamina. Sendo assim, os casos de vingança privada são, indubitavelmente, ilegais, como afirmamos anteriormente, o que representa um retrocesso a um estado primitivo, que seria a negação da ordem jurídico social, o que no nosso entender, acarretaria a quebra da essência do pacto social, sem o qual a humanidade não subsistiria.

A passagem do estado natural ao estado civil, destarte, substituiu o instinto pela justiça, pelos princípios destas, pela razão em detrimento do impulso físico e do apetite irracional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário