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sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Livro resgata autos do assassinato de Euclides da Cunha

Por Rodrigo Haidar
Sobre Euclides da Cunha parecia já se ter dito, escrito e encenado tudo. O autor de Os Sertões é daqueles personagens cuja vida — e morte — foi esmiuçada à exaustão. Mas há sempre algumas lacunas. E uma delas acaba de ser preenchida com o lançamento de Crônica de uma Tragédia Inesquecível — Autos do processo de Dilermando de Assis, que matou Euclides da Cunha.
Na manhã de 15 de agosto de 1909, Euclides da Cunha invadiu armado a casa de Dilermando de Assis, amante de sua mulher, e acertou dois tiros no rival, que reagiu também a tiros e matou o escritor. O livro traz a transcrição dos primeiros depoimentos colhidos logo após o tiroteio entre o amante e o marido de Anna Emília Solon da Cunha até a segunda sentença de absolvição de Dilermando, em 31 de outubro de 1914.
Quando matou Euclides da Cunha, Dilermando tinha 21 anos e há quatro mantinha um caso amoroso com Anna. O relacionamento extraconjugal trouxe à luz dois filhos, ambos registrados por Euclides. Os depoimentos dos autos revelam que o escritor tinha conhecimento desse fato. O processo mostra também que as razões do surgimento do triângulo amoroso que deu causa à “Tragédia da Piedade” — como ficou conhecido o crime, em alusão ao bairro carioca onde ocorreu — são usadas tanto pela defesa quanto pela acusação para tonificar a musculatura de suas teses.
De um lado, a acusação carrega as tintas na tese de o réu ter cometido o crime impelido por “motivo reprovado”. De outro, os advogados de Dilermando tentam mostrar, de forma acessória à alegação de legítima defesa, que os atos e a personalidade de Euclides da Cunha teriam impulsionado sua mulher à traição.
Um dos documentos juntados ao processo em que fica claro esse objetivo é o artigo do jornalista Júlio Bueno, companheiro de gamão de Euclides, publicado no jornal O Muzambinho uma semana depois do crime. Em um trecho, o jornalista descreve a relação do escritor com Anna.
“Mas aquele de grande espírito tinha uma falha; aquele de imenso coração tinha um ponto negro; aquela alma Adamantina, como novo Gulinan, tinha uma jaça; aquele Himalaia de patriotismo, de dedicação para os fracos, para os oprimidos, para os pequeninos, para os infortunados, tinha uma caverna escura; como Achiles, o herói de Homero, tinha um ponto vulnerável; aquele cultor apaixonado do dever tinha um senão — essa falha, esse ponto negro, essa jaça, essa caverna escura, esse ponto vulnerável, esse senão, era o abandono moral da companheira, daquela que de carinho, de zelo, de dedicação, o aconselhava, o advertia, o arredava dos perigos, procurando cercá-lo de uma atmosfera de calma e repouso. Porém o grande homem, por uma fatalidade idiossincrásica, correspondia mal a essas disposições da esposa.”
Prisão moral
O depoimento sobre Euclides da Cunha publicado no jornal por seu parceiro de gamão é apenas uma entre as diversas preciosidades que constam do processo e são resgatadas pelo livro. O relatório do delegado Joaquim Pedro de Oliveira Alcântara, que presidiu o inquérito policial sobre o crime, é revelador da comoção social provocada com a morte do escritor. Comoção que faria Dilermando, mesmo absolvido por duas vezes, ser sempre tido como o algoz do autor de Os Sertões.
Em um trecho do relatório, o delegado atribui a “desordem no lar do extinto e glorioso homem de letras” às “relações adulterinas” mantidas entre Dilermando e Anna. Sustenta que o assassinato foi premeditado e contou com a ajuda de Dinorah, irmão de Dilermando, que também foi alvejado com dois tiros por Euclides e sobreviveu.
“[Dilermando] ordena a Dinorah que o faça [Euclides] entrar para a sala de visitas e vai vestir uma túnica; vede este traço característico: — Dilermando está com D. Anna à mesa — íntimo, sem túnica, em mangas de camisa, mas para receber o marido desta, vai vestir-se... é que ele sabia que a cena seguinte seria solene”, escreve o delegado.
A fundamentação para o pedido de prisão preventiva, corroborado pelo promotor e aceito pelo juiz (Dilermando de Assis passou quase dois anos preso), provavelmente não passaria pelo crivo do Supremo Tribunal Federal hoje: “apesar de serem os indiciados aspirantes militares, revelam em todo esse crime tal ausência de senso moral, que é de se presumir se furtem à ação da Justiça”.
Para atestar a “insensibilidade moral, a ausência dos elementos que disciplinam os homens normais e lhes moram a ação”, o delegado afirma que “basta lembrar que Dilermando, ao dar as suas primeiras declarações, procurou construir a hipótese de que o Dr. Euclides Cunha, homem próximo à genialidade, era um quase demente, impulsivo e insano”.
Fatos e versões
O delegado faz ainda referência à contradição nos depoimentos dos envolvidos na tragédia. A alegação ganha peso com a leitura dos primeiros depoimentos prestados logo após o crime, à Polícia, e os que se seguiram, à Justiça.
A viúva de Euclides da Cunha, por exemplo, um dia depois da morte de seu marido, afirma que “suas relações de amizade com os moços Dilermando e Dinorah foram sempre de proteção e carinho maternal”. No dia seguinte, retifica as declarações para atestar que tinha estreitas relações com Dilermando, “a quem não ocultava todos os seus desgostos íntimos”. Mais de dois meses depois, ouvida em Juízo, Anna revela os detalhes do relacionamento e admite, inclusive, que Euclides não é o pai de um de seus filhos.
Entre os depoimentos transcritos, se destaca o da menina Celina Fontainha Cabral, de nove anos de idade, única testemunha que afirmou ter visto Dilermando desferir o tiro fatal em Euclides, quando o escritor já estava desarmado, depois de bradar: “Espera, cachorro!”. Baseada principalmente neste testemunho a acusação tentou, em vão, derrubar a tese de legítima defesa.
A defesa, feita pelos advogados Evaristo de Moraes e Caetano Delamare Garcia, é outro ponto alto do processo. Salta aos olhos o trabalho de campo dos advogados em busca de informações que beneficiassem seu cliente. Com base em depoimentos escritos, cartas e outros documentos de parentes, amigos e conhecidos de Dilermando e Euclides, os defensores tentaram traçar o perfil que depois sustentariam no Júri. O de que “o temperamento impulsivo do Dr. Euclides da Cunha o levou, mais de uma vez, e com intermitência de depressão e apatia, a cometer violências contra as pessoas”.
Eterno culpado
Dilermando de Assis foi denunciado pelo assassinato de Euclides da Cunha em 24 de setembro de 1909 e absolvido pela primeira vez em 5 de maio de 1911. Dos 12 jurados, seis votaram a favor da tese de legítima defesa e prevaleceu o princípio de que o empate beneficia o réu — in dúbio pro réu.
A Justiça acolheu recurso da Promotoria por um novo julgamento porque um dos jurados, depois de reconhecer que o acusado agiu movido por motivo reprovado, votou a favor da tese de legítima defesa. “O reconhecimento daquela agravante é incompatível com esta justificativa, porquanto não pode ser justificado um crime praticado por motivo reprovado”, sustentou o procurador-geral de Justiça em seu parecer.
No segundo julgamento, em 31 de outubro de 1914, em um Júri formado por sete pessoas, cinco decidiram que o réu agiu em legítima defesa ao matar Euclides da Cunha. O campeão de tiro Dilermando foi absolvido pela Justiça, mas nunca pela sociedade, apesar de passar o resto da vida tentando resgatar sua reputação.
Como relata a professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da Universidade de São Paulo, Walnice Nogueira Galvão, na brilhante apresentação que faz do processo, a última entrevista de Dilermando de Assis à imprensa teve conseqüências desastrosas. Segundo a estudiosa da vida de Euclides da Cunha, a reportagem do jornalista David Nasser, da revista O Cruzeiro, em 1951, sob o título “O crime de matar um Deus”, trouxe fotos de Dilermando com o torso nu para mostrar as cicatrizes deixadas pelos tiros desferidos por Euclides da Cunha e redundou em novos ataques e exposição pública negativa. Dilermando de Assis morreu três semanas depois da publicação da reportagem, vítima de ataque cardíaco, aos 63 anos.
A história da Tragédia da Piedade foi encenada em 1990, na minissérie Desejo, levada ao ar pela Rede Globo. Euclides da Cunha foi vivido por Tarcísio Meira, Dilermando interpretado por Guilherme Fontes e Anna Emília Solon da Cunha por Vera Fischer.

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