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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Furto famélico

Furto famélico: estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa supralegal?

Eduardo Luiz Santos Cabette,

A possibilidade de subsistência alimentar é o requisito mínimo a uma existência humana com dignidade. Segundo Boff  o problema da pobreza e da miséria chega a constituir-se em uma questão "ecológica, na sua dimensão social".
Na realidade desde as primeiras formulações do jusnaturalismo que defendem a existência de normas sobre - humanas a assegurarem certos direitos fundamentais ou naturais, passando por sua "Teoria Dinâmica" preconizada por  John Wild , segundo a qual o ser humano teria certas "tendências" imanentes indeclináveis para a consecução de sua "plenitude"; sempre lugar de destaque indiscutível caberá à alimentação como um dos direitos mais básicos.
Mesmo nas formulações mais contemporâneas de teorias da justiça, não se abre mão de um mínimo ético, de uma reserva básica de direitos que devem ser assegurados igualitariamente para que, a partir daí, se possa construir uma idéia de justiça.  
Assim sendo, o direito de propriedade somente poderá prevalecer enquanto não atinja esses direitos básicos pressupostos à realização da justiça, dentre os quais a subsistência no aspecto da alimentação destaca-se sobremaneira.
O furto, enquanto crime de natureza patrimonial, encontra-se visceralmente ligado a essa problemática. E a figura doutrinariamente denominada de "furto famélico" deve ser sob essa ótica analisada.
O chamado "furto famélico" configura-se quando o furto "é praticado por quem, em estado de extrema penúria, é impelido pela fome, pela inadiável necessidade de se alimentar”.  Em tais circunstâncias não seria justo apenar-se  um ser - humano por seu ato, embora tipicamente previsto. Tal conclusão é inarredável em qualquer concepção humanitária. No entanto, a motivação jurídica dessa solução é que se nos apresenta problemática: a questão seria responder se o que justifica a não punição do "furto famélico" seria a causa excludente de antijuridicidade do estado de necessidade ( art. 24, CP ) ou a simples inexigibilidade de conduta diversa supralegal, de discutível aceitação. Ou seja, é possível adequar o caso concreto à previsão legal ou será necessário, neste caso, utilizar-se de fórmulas extralegais em benefício do agente?
Estado de necessidade
O estado de necessidade é legalmente previsto como uma das causas excludentes de ilicitude no art. 24 do Código Penal Brasileiro, "verbis":
"Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se."
Como se vê, o chamado estado de necessidade nada mais é do que a previsão legal de uma situação de inexigibilidade de conduta diversa, qualificada ou delimitada por certos requisitos.
Tais requisitos são divididos na concepção de Frederico Marques  em "requisitos da situação de necessidade" e "requisitos do fato necessitado".
Seriam “requisitos da situação de necessidade”: “(a) um perigo atual; (b)ameaça a direito próprio ou alheio; (c) situação não provocada voluntariamente pelo agente; (d) inexistência do dever legal de enfrentar o perigo".
“Requisitos do fato necessitado” seriam: “(a) inevitabilidade da ação lesiva; (b) inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado".
Inexigibilidade de conduta diversa supralegal
Aníbal Bruno arrola a exigibilidade de conduta diversa como elemento do conceito de culpabilidade. Aponta o fato de que para que uma conduta seja culpável "é necessário que, nas circunstâncias, seja exigível do agente uma conduta diversa; que a situação total em que o proceder punível se desenvolve não exclua a exigência do comportamento conforme ao Direito, que se pode humanamente reclamar de todo homem normal em condições normais. O comportamento conforme ao Direito não pode ser exigido de maneira absoluta, mas tem de condicionar-se ao poder do sujeito, físico ou moral, de acordo com a situação total do momento."
Segundo Carla Campos Amico, "et al." "a inexigibilidade de conduta diversa é uma causa geral de exclusão de culpabilidade fundada na não censurabilidade de uma conduta, quando não se pode exigir do agente, em determinadas circunstâncias e com base nos padrões sociais vigentes, diferente ação ou omissão." Ela ainda se dividiria em legal e supralegal. "A primeira se encontra delimitada na lei penal; a segunda, embora não delineada no ordenamento jurídico, é utilizada para fundamentar decisão absolutória."
De acordo com esse entendimento haveriam situações em que, independentemente de previsão legal, caberia o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa, carecendo legitimidade à punição do agente. Tal se daria como num preenchimento necessário à coerência do sistema em face das suas inevitáveis lacunas provocadas pela absoluta impossibilidade de previsão de todas as possíveis configurações fáticas a serem reguladas pelo Direito.
Neste ponto vale destacar a manifestação de  Francisco de Assis Toledo9:
"Em relação às denominadas causas supralegais de exclusão da ilicitude, silenciou-se a reforma penal brasileira, tal como o Código de 1940. Isso, entretanto, não deverá conduzir o intérprete a afirmar o caráter exaustivo das anteriormente citadas causas legais de justificação, como fez Bataglini, em relação ao Código italiano. É que as causas de justificação, ou normas permissivas, não se restringem, numa estreita concepção positivista do direito, às hipóteses expressas em lei. Precisam igualmente estender-se àquelas hipóteses que, sem limitações legalistas, derivam necessariamente do direito vigente e de suas fontes. Além disso, como não pode o legislador prever todas as mutações das condições materiais e dos valores ético - sociais, a criação de novas causas de justificação, ainda não traduzidas em lei, torna-se uma imperiosa necessidade para a correta e justa aplicação da lei penal."
Assim sendo, a aplicação das causas supralegais seria possível "utilizando-se os métodos integrativos da analogia 'in bonam partem' e dos princípios gerais do Direito, que suprem as lacunas em normas não incriminadoras".
Não obstante, há quem entenda que o conceito de inexigibilidade de conduta diversa supralegal tenha exercido sua função em contextos históricos marcados pela "interpretação demasiadamente restritiva das fórmulas legais, a cunhagem defeituosa das mesmas e, inclusive, a falta de previsão de exculpantes necessárias e já consagradas pela doutrina, ou postuladas em trabalhos de projetos, e político - criminais...". Para esses estudiosos "se torna totalmente desnecessária a busca de uma eximente autônoma de inexigibilidade de conduta diversa, que pode ter atendido a exigências históricas já superadas, mas cuja adoção, hoje, prejudica toda sistemática da culpabilidade."
Consideramos, porém, que o reconhecimento da inexigibilidade de conduta diversa supralegal não perdeu sua atualidade, pois que o problema das lacunas do Direito jamais foi ou será sanado, tendendo, ao contrário, a agravar-se pela constante dinamização daquilo que Miguel Reale faz referência em sua teoria como "o mundo da vida" ( "Lebenswelt" ).
Se o que motiva a aversão à inexigibilidade de conduta diversa supralegal é o temor de sua banalização geradora de eventuais impunidades deve-se lembrar a afirmação de Bettiol15 de que um Direito Penal fraco "é apenas o que não pune quando existem todos os pressupostos de uma punição entre os quais o da culpabilidade; quando porém a culpabilidade não subsiste porque não se podia esperar do agente uma motivação normal, seria uma heresia falar ainda de culpa e aplicar pena." E acrescente mais à frente: "A doutrina da não exigibilidade é uma válvula que permite a um sistema de normas respirar em termos humanos."
Conclusão
Partindo, portanto, de nossa aceitação da inexigibilidade de conduta diversa supralegal como causa exculpante, resta-nos concluir acerca da melhor adequabilidade dos casos de "furto famélico" a esta ou ao estado de necessidade.
É freqüente encontrar na doutrina alusões ao "furto famélico" entendido como uma modalidade de estado de necessidade. Neste sentido a assertiva de Noronha: "O 'estado de necessidade', tal como ocorre no 'furto famélico', exclui a antijuridicidade." Idêntico posicionamento é encontrável  na jurisprudência.
Sem embargo desse respeitável entendimento, consideramos que os casos de "furto famélico" são melhor adequáveis à figura da inexigibilidade de conduta diversa supralegal do que ao estado de necessidade.
Como já foi destacado linhas volvidas, o estado de necessidade nada mais é do que uma previsão legal de um caso de inexigibilidade de conduta diversa. Entretanto, a noção de inexigibilidade de conduta diversa não se resume ao estado de necessidade tal qual legalmente moldado. Este é apenas uma forma qualificada ou especificada legalmente por uma série de requisitos, cuja falta de qualquer um desnatura a excludente.
O "furto famélico" não apresentaria dificuldades em adequar-se àqueles chamados por Frederico Marques de "requisitos da situação de necessidade" ( perigo atual, ameaça a direito próprio ou alheio, situação não provocada voluntariamente pelo agente e inexistência do dever legal de enfrentar o perigo ).   Mas o mesmo não ocorreria com o primeiro dos "requisitos do fato necessitado",  elencados pelo mesmo autor ( inevitabilidade  da ação lesiva e inexigibilidade do sacrifício do bem ameaçado ).
A "inevitabilidade da ação lesiva" em nossa concepção, estaria prejudicada no caso do "furto famélico", desnaturando destarte o estado de necessidade.
É lição de Nelson Hungria quanto ao estado de necessidade, que "exige o Código que o perigo não possa ser evitado por 'outro modo', isto é, sem o sacrifício ( total ou parcial ) do direito alheio. O estado de necessidade, contrariamente ao que ocorre com a 'legítima defesa', é, eminentemente, 'subsidiário': não existe se o agente podia conjurar o perigo com o emprego de meio não ofensivo do direito de outrem."
Nos casos de "furto famélico" estariam em jogo os direitos à incolumidade física ( saúde ) e até à vida do agente. Mas se procurarmos pensar em casos tais que indiquem a "inevitabilidade da ação lesiva" ( furto ), ou seja, casos em que a atuação do agente não se poderia dar por outro modo a fim de evitar o perigo à sua saúde ou vida ocasionado pela fome, recairemos em situações - limite nas quais as condições físicas do sujeito seriam tão precárias que na verdade tornariam impossível a ele a prática da subtração.
Supondo que o autor esteja em condições de perpetrar a subtração, forçoso é reconhecer que sempre lhe seria possível escolher caminhos outros à solução de seu infortúnio que não a subtração  dos bens alheios. Por exemplo, entre outros, o oferecimento de serviços em troca da alimentação ou o simples apelo ao auxílio caritativo. Diferentemente da legítima defesa, no estado de necessidade é preciso que não haja possibilidade de evitar o perigo de "outro modo".
Dessa maneira, restaria prejudicada a aplicação do estado de necessidade ao furto famélico por carência de um dos seus requisitos. Mas não seria por isso que o agente deveria ser responsabilizado criminalmente, pois como adverte Aníbal Bruno: "Geralmente, estes casos de não exigibilidade de conduta diversa se resolvem em situações de necessidade, embora não se revistam daquelas condições que excluem, segundo a lei, no estado de necessidade, a ilicitude do fato. A razão da não exigibilidade cobre precisamente aqueles casos que a ausência dessas condições particulares impede que se classifiquem como o estado de necessidade do Código."
No "furto famélico" a pedra de toque não está no "fato" de haver a possibilidade de evitar o perigo por "outro modo" que não a ação lesiva, a configurar um "estado de necessidade" em que o agente não tem à sua disposição outros meios e é "obrigado" a agir de maneira lesiva para que não seja prejudicado em seu direito. No estado de necessidade a "escolha" do agente opera-se somente quanto a agir de maneira lesiva e fazer prevalecer o seu direito ou simplesmente abdicar de seu direito. Se escolher a defesa de seu direito, somente um caminho lhe é possível: a ação lesiva do direito alheio, nenhum outro.
Por isso o "furto famélico" não se pode adequar ao estado de necessidade. Nele o agente não escolhe entre seu direito e um único caminho de salvação. No "furto famélico a escolha do agente é entre duas ou mais possibilidade de salvaguarda do seu direito. Por exemplo: a ação lesiva e o pedido de ajuda; ou, a ação lesiva e a barganha de um serviço etc. Não há uma relação de exclusão entre o não lesar e o direito do agente, ou seja, no "furto famélico" é possível ao sujeito escolher não atacar o patrimônio alheio e ainda assim procurar preservar seu direito à alimentação ( saúde e vida ) por "outros modos".
A inexigibilidade de conduta diversa apresenta-se sob o aspecto de que a escolha entre as condutas possíveis nos casos de "furto famélico" não poderia ser imposta ao sujeito sob pena de lesão à dignidade da pessoa humana. Ao ser - humano não se pode compelir à humilhação para a satisfação de suas necessidades básicas como a alimentação. Certamente o ato de furtar não é digno, mas o que não se pode pretender é obrigar o homem a uma determinada escolha que avilte seus sentimentos íntimos de orgulho e honra. O que seria inadmissível, indigno e odioso, muito mais que o ato de furtar, seria o obrigar o homem à humilhação de pedir alimento ou trabalhar a troco dele. Se alguém escolher livremente essa conduta nada haverá que seja desabonador, mas não se pode aceitar a obrigação ao ser - humano de assim agir, pois para muitos é mais aviltante o pedir aquilo que é básico ( alimento ), do que tomá-lo para si num ato de luta pela sobrevivência inerente aos seres vivos.
Finalizando, podemos concluir que o reconhecimento do "furto famélico" como um caso de inexigibilidade de conduta diversa supralegal seria um tributo ao Princípio Fundamental Constitucional da "dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1º, III, da Constituição Federal.

Um comentário:

  1. No Brasil, o furto famélico tem sido alvo de polêmica e divergências entre os juizes brasileiros pois não é tido como crime. Quando se há a certeza dessa prática, a solução quase sempre é a absolvição do indivíduo pelo Princípio da Insignificância, o que não é bem aceito por alguns. E com certa razão, pois sejamos racionais. Isso é uma forma direta de incentivo à essa espécie de furto, a partir do momento em que não há punição para tal ato. Acredito que deve sim haver uma absolvição, mas claro, com condições. Afinal, furto é furto. Independente do motivo não deixa de ser ilícito. E deve ser julgado de alguma forma. Pois quem há de arcar com os prejuízos do comerciante? Não é "perdoando" delitos que adquiriremos uma sociedade digna, mas evitando que sejam cometidos.

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