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sábado, 12 de janeiro de 2013

FURTO FAMÉLICO

Saiu na Folha em 09/08/10:
Uma diarista desempregada, mãe de dez filhos, moradora de uma favela em Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, corre o risco de ser presa a qualquer momento se não pagar R$ 300 à Justiça. A cobrança se refere à fiança por ela ter sido presa em flagrante e depois libertada ao tentar furtar roupas de um supermercado. O crime aconteceu no dia 30 de julho.
Claudinéia Freitas Santos, 38, foi até um supermercado Carrefour e tentou furtar dez bermudas e dois sapatos para os filhos. Um segurança a flagrou e chamou a polícia.
Acabou presa em flagrante.
Na delegacia, ela se negou a ligar para a família. ‘Estava morrendo de vergonha. Quebrei o chip do meu celular para não ligar para o meu marido. Só mais tarde, quando vi que ficaria presa, pedi para me deixarem ligar.’
Comovido com a situação da desempregada, o advogado Josué de Souza, que coincidentemente estava na mesma delegacia, decidiu ajudá-la. Sem cobrar nada, fez o pedido de liberdade. Ela foi solta no sábado à noite. Entretanto, para responder ao processo fora da prisão, ela tinha de pagar uma fiança de R$ 300, de acordo com o que foi estipulado pela juíza que estava de plantão naquele fim de semana. Vivendo de doações e com uma renda de R$ 330 de um programa assistencial do governo, ela afirma que não tem como pagar esse valor.
No fórum, Claudinéia redigiu uma carta dizendo que era pobre e que ela e o marido estavam sem emprego. Porém, a juíza Cláudia Ribeiro, que assumiu o caso, mandou prendê-la no último dia 5 por não ter quitado o débito.
Para a defensora pública Paula Barbosa Cardoso, que passou a atuar na defesa da desempregada, a decisão foi equivocada, considerando que ela é ré primária.
‘Para esse crime [tentativa de furto], a Justiça tem concedido penas alternativas. Não há necessidade de prisão.’ Procurada, a juíza Cláudia Ribeiro afirmou por intermédio de uma servidora que não se lembrava desse caso, mas que poderia rever a decisão. No entanto, enquanto a determinação não for modificada, Claudinéia é considerada foragida da Justiça. Claudinéia, seu marido, Raimundo dos Santos, os dez filhos, um genro e uma neta moram em uma casa de quatro cômodos, numa viela localizada no pé de um morro em Cidade Tiradentes. No ano passado, os três homens adultos da casa perderam seus empregos. As duas mulheres também estão desempregadas. Ainda envergonhada pela prisão e por ser procurada pela Justiça, a desempregada reclama da forma como foi tratada. ‘Errei e estou arrependida. Fiquei presa da tarde de sexta até a noite de sábado. Fui tratada que nem um cachorro. Até parecia que eu era chefe da [facção criminosa] PCC.’
O furto famélico ocorre quando alguém furta para saciar uma necessidade urgente e relevante. É a pessoa que furta para comer pois, se não furtasse, morreria de fome. Mas o furto famélico não existe apenas para saciar a fome. Alguém que furta um remédio essencial para sua saúde, um cobertor em uma noite de frio, ou roupas mínimas para se vestir, também pode estar cometendo furto famélico.
O furto famélico não é crime porque a pessoa age em estado de necessidade: para proteger um bem jurídico mais valioso – sua vida ou a vida de alguém – a pessoa agride um bem jurídico menos valioso – a propriedade de uma outra pessoa.
Para que o crime seja configurado, é essencial que se preencham alguns requisitos:
Primeiro, tem de ser furto. Não pode ser roubo, extorsão etc. Apenas quando não há violência ou ameaça há o furto famélico (como o nome diz, é furto, e não roubo famélico). Se houver violência ou grave ameaça, o direito protegido – vida – passa a estar muito próximo do direito agredido (a vida ou incolumidade física da vítima).
Segundo, o juiz deve analisar a proporcionalidade do que foi furtado. Se alguém tem dez filhos, óbvio que vai precisar de mais comida para alimentá-los do que alguém que tem um filho. O furto famélico é apenas para suprir as necessidades básicas de sobrevivência imediata. Não dá pra furtar cem quilos de arroz e dizer que é famélico pois ninguém consome cem quilos de arroz em poucos dias.
Por fim, o juiz precisa estar convencido de que a pessoa precisa do bem para sobreviver. Esse é um requisito básico de qualquer estado de necessidade. Não dá pra alguém que pode obter o bem de outra forma alegar que não tinha opção. O estado de necessidade só fica configurado quando não há outra opção razoável. Além disso, o bem precisa ser essencial para a sobrevivência. Não dá pra ser uma televisão, um casado de grife etc.

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