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segunda-feira, 9 de maio de 2011

Partidos e coligações eleitorais no Brasil

Autor: Paulo Kramer

Com o título acima, recente coletânea, publicada em parceria entre a Editora da Unesp e a Fundação Konrad Adenauer e organizada pelos cientistas políticos Silvana Krause, da Universidade Federal de Goiás, e Rogério Schmitt, da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, comprova, mais uma vez, que tamanho não é documento. Em apenas 143 páginas, o leitor – acadêmico especializado ou leigo politizado, não importa – encontra um banquete de informações, dados estatísticos e análises sobre o que considero uma das mais graves patologias do sistema político brasileiro: as coligações partidárias – ou, no jargão técnico, “listas associadas” – em eleições proporcionais, aquelas em que se disputam vagas na Câmara dos Deputados, nas Assembléias Legislativas e nas Câmaras Municipais.
Tratam-se de alianças “oportunisticamente” biodegradáveis, que não esperam sequer a diplomação dos novos legisladores para se desmanchar, pois isso ocorre já no dia da eleição, antes mesmo de encerrada a contagem dos votos! No Legislativo, aliados de ontem convertem-se nos adversários de hoje, e a governabilidade que se dane. Em poucas palavras, a coligação eleitoral não se prolonga em coalizão parlamentar, governista ou oposicionista. Muito antes de o governo Lula, com sua mescla de ignorância e desprezo pelo regime representativo, precipitar a atual crise ético-política, os custos da improvisação de maiorias parlamentares em apoio às propostas do Executivo já corroíam a imagem dos políticos e pressionavam perigosamente o Erário.
O mecanismo personalista que dilui os partidos nas próprias coligações que eles engendram privilegia os candidatos individualmente sobre (e contra) a instituição partidária. Daí porque, quase sempre que uma cadeira no Legislativo fica vaga, ela é ocupada por suplente de sigla diferente da do titular.
É verdade que o passar do tempo revelou um certo padrão de consistência ideológica nas coligações concorrentes às eleições realizadas depois do fim do regime militar de 1964/85, com partidos de esquerda e de direita preferindo aliar-se aos seus similares. Contudo, em última análise, é sempre o pragmatismo que dita a regra suprema: aliar-se para derrotar o principal adversário. Coligação é troca de conveniências. Os pequenos se aliam aos grandes e – pelo menos no caso de agremiações ditas progressistas, como o PPS e o PC do B – concentram-se em poucos candidatos, no intuito de garantir uma ou outra cadeira legislativa com as sobras dos votos dados aos sócios maiores, que excedem o quociente eleitoral, este resultante da divisão do número de votos válidos pelo de vagas parlamentares em disputa. Caso contrário, seria praticamente impossível aos partidos nanicos emplacar representantes.
E os grandes, que vantagem levam dando carona aos pequenos? À primeira vista, nenhuma. Partidos maiores atraem muitos candidatos, o que, por si, já tende a diluir sua competitividade. A resposta correta não se restringe ao plano da eleição proporcional, mas reside na conexão desta com o pleito majoritário, fundamentalmente a campanha ao governo estadual, puxada, o mais das vezes, por grandes partidos. Eles cobiçam a ampliação do tempo no horário eleitoral gratuito do rádio e da televisão para os seus candidatos ao Executivo, trazida pela adesão dos pequenos partidos.
Esses e outros pontos essenciais à compreensão da extrema fragmentação do quadro partidário e da precária representatividade dos mecanismos eleitorais no Brasil são cuidadosamente trabalhados pelos autores dos capítulos da coletânea em seções de revisão da literatura relevante, com referência aos dois grandes clássicos internacionais dos estudos partidários e eleitorais modernos, o francês Maurice Duverger e o italiano Giovanni Sartori, ao lado das obras de cientistas políticos brasileiros que deram/dão contribuições decisivas à consolidação acadêmica da área neste País: Antônio Lavareda, Gláucio Soares, Jairo Nicolau, José Antônio Giusti Tavares, Marcus Figueiredo, Maria do Carmo Campello de Souza, o saudoso Olavo Brasil de Lima Júnior e Renato Lessa, entre outros.
Breve visão de conjunto
Aliás, o primeiro capítulo, assinado por Rogério Schmitt, tem por objeto o mapeamento dos principais estudos sobre alianças e coligações na Ciência Política brasileira nos dois ciclos democráticos de nossa história contemporânea: de 1945 a 1964 e de 1985 ao presente. Como bem lembra Schmitt, “aliança” era o termo com que o Código Eleitoral de 1950 designava as listas associadas, ao passo que o nome “coligação” foi introduzido por lei de 1985 que deu ao código sua redação atual (As associações partidárias nas eleições proporcionais foram proibidas no regime militar).
A conclusão de Schmitt é que o hiato ditatorial de duas décadas não foi capaz de romper a forte tendência coligacionista, característica comum aos dois ciclos multipartidários. Assim, nas eleições entre 1950 e 1962, nada menos que “80% das alianças (...) formadas para a disputa de vagas na Câmara dos Deputados (...) obtiveram a primeira ou a segunda posição em número de votos” (página 16). Quanto ao presente ciclo, apesar de admitir que as coligações eleitorais – tema novo na agenda de pesquisas da ciência política brasileira – “ainda não foram tão estudadas (...) como as alianças (...) durante o primeiro multipartidarismo, Schmitt menciona uma referência de Olavo Brasil à primeira eleição ‘casada' da Nova República (1986, para o Congresso Constituinte, as Assembléias Legislativas e os governos estaduais), dando conta de que, já naquele pleito, do total de quase 38 milhões de votos válidos, somente 14,5 milhões (ou 38%) “foram dados a partidos que concorreram isoladamente” (página 20).
O capítulo de autoria do professor de jornalismo do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) Vivaldo Sousa, baseado em sua tese de mestrado em ciência política para a Universidade de Brasília (UnB), trata do comportamento das alianças entre 1954 e 1962 nos pleitos majoritários coincidentes com proporcionais. Vale lembrar que, naquele período, algumas constituições estaduais fixavam mandato de cinco e outras de quatro anos para os governadores. Sousa conclui pela influência marcante do pleito majoritário como indutor de alianças proporcionais em eleições casadas. “Conforme os dados mostram, os deputados federais eleitos por coligação nos estados com pleitos coincidentes passaram de 42,42% (1954) para 61,71% (1958), contra uma evolução de 19,81% para 28,26% naqueles estados com eleições em anos diferentes para cargos majoritários e proporcionais, no mesmo período”. A hipótese desse autor é de que “isso ocorre porque a coligação se forma a partir do candidato a governador” (página 40).
“A lógica das coligações no Brasil” é o título do capítulo da jornalista da TV Câmara Aline Machado, também mestre em ciência política pela UnB, ora cursando o doutorado na Florida International University. Seu foco de análise são as eleições de 1994 e 1998 para a Câmara dos Deputados. Eis aqui algumas de suas principais conclusões: nos dois pleitos examinados, é elevado o preenchimento de vagas de deputado federal mediante coligações (91,8% em 94 e 88,9% em 98). Quanto menor o número de cadeiras em jogo (estados com máximo de oito deputados federais cada, como Roraima, Acre, Amazonas, Tocantins e Sergipe), mais acirrada a disputa e, portanto, maior a probabilidade de coligação. Por cálculo de sobrevivência eleitoral, partidos pequenos participam mais de alianças (98,8% em 94; 97,3% em 98) do que os médios (93,2% e 91,3%, no mesmo período) e os grandes (92,6% e 90%, idem).
O capítulo seguinte, “Eleição proporcional: os efeitos das coligações e o problema da proporcionalidade”, escrito em co-autoria pelo jornalista do Senado Federal Jefferson Dalmoro e o orientador de sua tese de mestrado na UnB, David Fleischer, estuda as eleições para a Câmara nos anos de 1994, 1998 e 2002. Cabe registrar que o professor Fleischer dedica-se, há mais de 30 anos, a produzir conhecimento sobre partidos e eleições no Brasil. Depois de passar em revista as diferentes fórmulas de cálculo adotadas pelos sistemas de representação ao redor do globo para converter votos em cadeiras parlamentares (dentre as quais, single-transferable vote, ou STV; Sainte-Laguë; e D'Hondt, esta última vigente no Brasil), a dupla disseca verdadeira montanha de dados estatísticos do TSE, testando-os sob distintos ângulos, tais como o impacto do tamanho das circunscrições sobre a proporcionalidade (estados que elegem de 8 a 12, até 22 e de 23 a 70 deputados federais) e o efeito das coligações no número de partidos representados na Câmara, e concluem propondo “mudança da fórmula de distribuição das vagas dentro das coligações” (página 110), a fim de tornar justa a relação entre os votos recebidos pelos partidos e os assentos parlamentares assim conquistados.
Finalmente, Silvana Krause utiliza os resultados das urnas de 1994, 1998 e 2002 em seu capítulo, “Uma análise comparativa das estratégias eleitorais nas eleições majoritárias: coligações eleitorais X nacionalização dos partidos e do sistema partidário brasileiro”, para demonstrar que, ainda em grande medida, no Brasil a política nacional é refém dos acordos e conflitos entre os chefes partidários estaduais. Uma política que é feita da periferia para o centro, motivo da resistência instintiva de quase todas as lideranças contra a chamada verticalização.
As coligações proporcionais na reforma política
De 1995 a 1998, o Senado discutiu e votou o conjunto de projetos referentes à reforma política. Nos sete anos seguintes, até hoje, a Câmara debateu e modificou substancialmente o pacote. Sua última versão, na forma do Projeto de Lei 2679/03 da Comissão Especial de Reforma Política, elaborado por seu relator, o deputado Ronaldo Caiado (PFL/GO), ainda espera para ser apreciada na Comissão de Constituição e Justiça, onde recebeu substitutivo do deputado Rubens Otoni (PT/GO). A proposta de Caiado acaba com as coligações proporcionais, mas, para acomodar a grita dos partidos nanicos, substitui-as por “federações”, obrigadas a se manter no mínimo por três anos depois da eleição, sob pena de as siglas desertoras perderem sua participação no Fundo Partidário e outras prerrogativas.
Pena que o clima atual entre os parlamentares esteja mais para remendo do que para autêntica reforma, o que provavelmente garantirá uma sobrevida às coligações proporcionais com seu cortejo de distorções tão bem discutido pelos autores participantes da coletânea.
Como, já em 1893, verberava o estadista gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil, ‘pai' do primeiro Código Eleitoral, de 1932, a “representação das opiniões dispensa a formação das coligações para a eleição [...] Politicamente, é imoralidade reunirem-se indivíduos de credos diversos com o fim de conquistarem o poder, repartindo depois, como cousa vil, o objeto da cobiçada vitória” (citado por Dalmoro e Fleischer à página 91).

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