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sábado, 30 de abril de 2011

A TRADIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA


Autor: Márcio Nuno Rabat

Como não poderia deixar de ser, a tradição constitucional brasileira consagra o princípio da publicidade das deliberações parlamentares, embora, desde o começo, com alguma ambiguidade. Dizia o art. 24 da Constituição do Império: “As sessões de cada uma das câmaras serão públicas, à exceção dos casos em que o bem do Estado exigir que sejam secretas”. Já a Constituição republicana de 1891 não tratava do assunto, o que proporcionou a Pontes de Miranda um inusual comentário impreciso: “No direito constitucional de 1891, a prática da publicidade era inconteste. Os regimentos previam discussão e votação secretas”. Ora, como seria inconteste a prática da publicidade se havia discussão e votação secretas?
Posteriormente, a definição constitucional das votações secretas no Congresso Nacional se foi tornando mais precisa. Ainda nas palavras de Pontes de Miranda: “Em 1934, fez-se secreto o voto nas eleições e nas deliberações sobre vetos e contas do Presidente da  República. A Constituição de 1946 apurou-lhe a técnica3. Escapou-lhe, disse-se, a espécie do art. 48 (perda do mandato)”. Para Pontes de Miranda, defensor da prevalência total da votação aberta, a falta de previsão do voto secreto para a decisão sobre a perda de mandatos de senadores ou deputados não constituía falha do texto: “No regime pluripartidário, em Constituição que mandou atender-se à representação dos partidos nas comissões e adotou outras medidas de responsabilização, é difícil explicar-se esse receio da votação aberta”.

A Constituição Federal de 1988 se aproxima do texto de 1946. A regra, como sempre, é a publicidade das sessões e dos votos. Mas exceções são explicitamente inseridas na Carta. São elas: aprovação da escolha de certos magistrados e titulares de cargos públicos (art. 52, III), da indicação de chefes de missão diplomática em caráter permanente (art. 52, IV) e da
exoneração do procurador geral da República (art. 52, XI)5; cassação do mandato de deputado ou senador (art. 55, § 2º); avaliação do veto do presidente da república a projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional (art. 66, § 4º). Possivelmente, a alteração mais significativa introduzida pela Constituição de 1988 – em relação à de 1946 – tenha sido a inclusão do segredo do voto nas decisões sobre perda de mandato de deputados e senadores.

De realçar, na tradição constitucional brasileira sobre a matéria, é a extensão que as constituições mais liberais e democráticas (como as de 1946 e 1988) dão ao segredo do voto, em confronto com sua restrição pelas cartas autoritárias. Assim, as constituições de 1937 e de 1967 (principalmente após a extensíssima “emenda” de 1969) foram exatamente
aquelas que mais ampliaram o uso do voto a descoberto no Congresso Nacional. A preocupação era, então, garantir que o governo (ditatorial) pudesse impor suas posições a um parlamento acuado. Daí a importância de se impedir, por exemplo, que os vetos do presidente da República a projetos de lei fossem analisados em escrutínio secreto. A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, chega ao requinte de explicitar a prevalência do voto aberto nesse caso (“art. 59, § 3º Comunicado o veto ao Presidente do Senado Federal, este convocará as duas Câmaras para, em sessão conjunta, dele conhecerem, considerando-se aprovado o projeto que, dentro de quarenta e cinco dias, em votação pública, obtiver o voto de dois terços dos membros de cada uma das Casas...”).

Constituição de 1946, art. 43: “O voto será secreto nas eleições e nos casos estabelecidos nos arts. 45, § 2º, 63, nº I, 66, nº VIII, 70, § 3º, 211 e 213”. As remissões referem-se aos seguintes casos: licença para o processo criminal do deputado ou senador (art. 45, § 2º); aprovação da escolha de magistrados (art. 63, I); julgamento das contas do presidente da República (66, VIII); julgamento do veto (70, § 3º); exame da decretação do estado de sítio (211); suspensão das imunidades de deputados e senadores (213).

Todas as citações retiradas de: Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, ps. 401 a 404 [Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960].

Os três casos estabelecidos no art. 52 referem-se a deliberações exclusivamente do Senado Federal. No texto original, havia ainda previsão de voto secreto para resolver sobre a prisão em flagrante e a formação da culpa no caso de crime inafiançável praticado por membro do Congresso Nacional (antigo art. 53, § 3º); no entanto, a emenda Constitucional nº 35, de 2003, alterou a situação.
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Embora a importância do confronto entre poderes estatais não deva ser subestimada na discussão sobre o caráter secreto ou público do voto no Congresso nacional, o debate, hoje, deve transcender esse fenômeno restrito. Na verdade, há razões para suspeitar que o enquadramento do problema nessa camisa de forças oculta o fundo da questão, que é a influência das disparidades sociais de poder sobre o funcionamento consistente do regime representativo.

Assim, mesmo as defesas do voto secreto que surgem na grande imprensa tendem a se concentrar no tema da relação entre poderes e procuram ridicularizar as tentativas de trazer, por exemplo, o papel da mídia para o centro do debate.

DIVISÃO DE PODERES, DESIGUALDADE SOCIAL E VOTO SECRETO


Autor: Márcio Nuno Rabat


Não é incomum que a adoção do voto secreto nos parlamentos seja justificada em função da divisão de poderes dentro do Estado. Seja como resquício da desconfiança da burguesia européia ascendente contra o ainda poderoso executivo monárquico (muitas vezes de extração aristocrática), seja pela experiência prática recente da força do poder executivo dentro da organização política dos Estados contemporâneos, a defesa do voto secreto no parlamento muitas vezes se apoiou na necessidade de impedir que, em algumas votações específicas (como a da manutenção ou derrubada do veto do chefe de governo), a capacidade de barganha e de pressão do poder executivo influenciasse de maneira espúria o resultado das deliberações parlamentares.

Na história do Brasil, isso fica claro nas Constituições de 1946 e 1988.
Em ambos os casos, a vivência recente sob regime ditatorial conduziu os parlamentares constituintes rumo ao estabelecimento de várias situações em que o voto, no Congresso Nacional, seria secreto. O já não tão curto período de normalidade constitucional em que vivemos não deve fazer esquecer os riscos de retrocesso político a uma situação de exceção ou de intervenções espúrias do poder executivo sobre as decisões congressuais (mesmo sem ruptura institucional).

No entanto, não parece estar aí a questão central – hoje – para a discussão da eventual adoção do segredo do voto em algumas deliberações parlamentares.

O argumento de fundo, a favor do voto secreto, não muda: a possível influência deletéria da desigualdade de poder sobre a liberdade do voto. Mas essa desigualdade deve ser buscada mais na própria sociedade (e em sua relação com o Estado) que no confronto entre distintos órgãos estatais. Essa é uma questão relevantíssima, que tem a ver com a forma como a instância política se articula com as disparidades sociais.

No capitalismo, a instância política tende a ser o lugar em que se valoriza a igualdade entre os cidadãos, fato que se manifestou historicamente na máxima “um homem, um voto” e na luta popular, freqüentemente vitoriosa, pela extensão do sufrágio. No entanto, essa igualdade política assenta sobre extremas desigualdades de poder no plano social e econômico.

Por isso, grande parte da batalha pela democracia assenta no projeto de reforçar, estender e aprofundar o espaço de igualdade que se expressa – ainda que precariamente – no plano político eleitoral, enquanto grande parte do esforço por minar o potencial democrático do regime representativo assenta na estratégia de manter a instância política sob permanente suspeita, de maneira a evitar que dela (e da relativa igualdade política que do sufrágio universal deriva) possam vir ameaças para a desigualdade econômica e social subjacente.
Uma situação de disparidade extrema de riqueza e poder no plano social se manifesta politicamente pela capacidade dos grupos mais poderosos de manter sob ataque a esfera política, de impor e manipular, pelo menos por certo tempo, a agenda parlamentar e governamental e de impedir que, nas disputas congressuais, venham a primeiro plano as reais colisões de interesses e valores entre setores sociais, subordinando-as a temáticas em que uma suposta opinião pública homogênea se opõe à suposta falta de correção das práticas parlamentares. Em um mundo (e, particularmente, em um país) em que a concentração de poder e riqueza caminha junto com a concentração do controle sobre os meios de comunicação de massas, o tipo de manipulação que consiste em criar e impor a necessidade imperiosa (seja por motivo ético, financeiro ou outro) de determinada decisão, acaba por adquirir, sim, grande influência, freqüentemente deletéria, sobre as deliberações das agências estatais.
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Não é necessário supor, no entanto, que a solução para esse problema esteja no segredo do voto dos representantes no parlamento, como forma de garantir uma certa independência da esfera política em relação à influência das disparidades de poder e riqueza na sociedade.

Em primeiro lugar, porque, levada ao extremo, tal posição resultaria na transformação das deliberações do Estado em processos secretos, com riscos óbvios para qualquer processo de
democratização social. Mas também porque a organização política das camadas populares – que é o elemento decisivo para a efetiva democratização da sociedade – passa, em boa medida, pela conquista da transparência das decisões estatais – e, até, das decisões privadas que tenham dimensão suficiente para impactar os rumos da coletividade (fato que, aliás, é pouco explorado nas discussões sobre o segredo ou a publicidade nas decisões coletivas, talvez porque, ao se confinar as questões da igualdade e da liberdade à esfera estatal, se está justamente liberando a esfera privada para a desigualdade e a opressão).

O que se procura resguardar, nas considerações precedentes, como nas que concluirão este estudo, é o fato de que, na avaliação dos mecanismos institucionais que melhor garantam a prevalência do interesse público (e, particularmente, dos interesses das camadas populares), não há lugar para formalismos abstratos. Assim, concretamente, tanto pode ser mais efetiva, para esse desiderato, a determinação constitucional da publicidade de todos os votos dados pelos representantes como a do segredo de alguns desses votos, desde que adequadamente justificado. De qualquer maneira, é fora de dúvida que o funcionamento consistente do regime representativo – tal como é hoje concebido – exige a prioridade absoluta para a publicidade das deliberações estatais, não podendo haver recurso ao escrutínio secreto, em decisões parlamentares, senão excepcionalmente.

 

DISTINÇÃO ENTRE MANDATO IMPERATIVO E MANDATO REPRESENTATIVO

Autor: Márcio Nuno Rabat

A distinção entre mandato imperativo e mandato representativo é relativamente clara. No primeiro, o mandatário se limita a transmitir a vontade do mandante, tal qual este expressamente lhe indicara; no segundo, o mandatário decide, em princípio, de acordo com os interesses e valores do mandante, mas é ele próprio que avalia quais sejam – e como melhor resguardar – esses interesses e valores. Ademais, no mandato imperativo, a atuação do mandatário fica vinculada à vontade Daqueles eleitores que especificamente o Escolheram, enquanto, no mandato representativo, o mandatário, ao assumir o mandato, como que se desvincula dos seus específicos eleitores para representar a totalidade do povo ou da nação. Daí que se tenha podido dizer que o representante não expressa a vontade da população mas a constrói.

Evidentemente, sendo o mandato imperativo, a necessidade de que os votos dos representantes sejam abertos é muito mais intensa. Na verdade, nesse caso, a publicidade do voto é automática: ao escolherem um representante e definirem o conteúdo de seus votos, os próprios eleitores estão tornando público esse conteúdo. No entanto, os regimes de representação política contemporâneos (inclusive o brasileiro) adotam, sistematicamente, o mandato representativo. Daí que esta reflexão deva concentrar-se nesse tipo de mandato.

Ora, não há como negar que o mandato representativo estabelece algum tipo de desvinculação entre os votos dos representantes e a vontade imediata dos representados. De certa forma, o que a liberdade do mandato significa é que o eleitores escolhem aqueles
representantes que lhes pareçam mais capazes de estabelecerem as diretrizes adequadas para a comunidade, debruçando-se com vagar na análise das questões a serem decididas e tendo em conta as circunstâncias de cada decisão. É claro que a escolha dos eleitores é determinada, em boa parte, pelas decisões anteriores que o representante tomou (e, por isso, é de se esperar que eles conheçam o conteúdo dessas decisões). No entanto, costuma ser ressaltado pelos defensores do 6 mandato representativo que um dos grande méritos do bom representante é saber afastar-se das posições imediatas dos eleitores para analisar seus interesses de longo prazo.

É essa relativa desvinculação entre a decisão do representante e a vontade imediata do representado que permite considerar a hipótese de voto secreto nas deliberações parlamentares. Afinal, admitir que o representante pode conhecer melhor os interesses da coletividade que os representados é admitir que a decisão do representante, se tomada sob a pressão imediata do corpo de representados, pode ser menos adequada que a decisão que ele tomaria se escolhesse exclusivamente de acordo com sua própria consciência. Ou, dito em outras palavras, o mandato livre supõe que a decisão do representante, de acordo com sua avaliação pessoal do interesse público, pode se aproximar mais do que os representados decidiriam, se dispusessem das condições adequadas para o fazer (em termos de tempo, informação, etc), do que a própria posição que os representados defendem – superficialmente – sem disporem dessas condições.

Não se trata de questão de somenos importância. Ela tem a ver, umbilicalmente, com a desigualdade de condições objetivas para a formação de opinião livre em sociedades estruturalmente desiguais. Como se sabe, por uma série de razões, inclusive pela extensão da jornada de trabalho, a participação política do cidadão comum é restrita e relativamente pouco informada (quando não deliberadamente mal informada). Claro que, do ponto de vista das forças democráticas, essa é uma situação a ser combatida, seja pela mudança nas condições de vida dos trabalhadores (por exemplo, com a redução da jornada de trabalho e a democratização do controle dos meios de comunicação), seja pela criação de instâncias de
deliberação coletiva populares (conselhos, sindicatos, partidos), em que a prática da discussão e formulação política se dissemine e aprofunde. Nada disso, porém, deve velar a análise concreta da situação de desigualdade atual e de seus efeitos sobre as instituições representativas.

Em resumo, a reflexão sobre o mandato representativo ou livre se articula com as considerações anteriores sobre o fundamento último do voto secreto: a necessidade de preservar o resultado da votação da influência espúria de disparidades de poder.

DISTINÇÃO ENTRE OS VOTOS NAS ELEIÇÕES


Autor: Márcio Nuno Rabat
Nos regimes representativos contemporâneos, o método dominante de escolha dos representantes políticos de uma coletividade nacional ou subnacional é o voto da totalidade da população adulta (o sufrágio universal). Nas casas legislativas, compostas de representantes eleitos, o método dominante de tomada de decisões é também o voto da totalidade dos membros. Em ambos os casos, a regra é que cada votante detém um voto de igual peso na decisão final. Essa semelhança formal não deixa de corresponder a semelhanças materiais entre os dois níveis decisórios; no entanto, ela também oculta diferenças significativas.

A distinção mais importante entre ambos os níveis diz respeito ao fato de que os eleitores, ao escolherem seus representantes, atuam em nome próprio, enquanto os representantes, ao tomarem decisões, atuam em nome dos representados. Essa distinção tem conseqüências óbvias para o problema do segredo do voto. O eleitor, ao votar em um candidato, expressa diretamente sua vontade; o representante, ao participar de uma deliberação parlamentar, expressa ou constrói a vontade dos representados (ou do povo). O eleitor não é mandatário de ninguém, e a ninguém presta contas de seu voto; o representante, não por acaso chamado de detentor de mandato ou mandatário, deve, em princípio, prestar contas de seus votos aos mandantes. Com essa distinção, fica estabelecida a principal razão pela qual o voto do representante, em regra, deve ser conhecido do representado, enquanto o voto do eleitor não precisa dessa transparência.

Algumas dúvidas, no entanto, não são esclarecidas pelo mero recurso a tal distinção. Assim, o fato de que o eleitor não presta contas de seu voto explica por que o conteúdo desse voto pode ser secreto, mas não explica por que ele não deve ser público. Afinal, em princípio, nas deliberações coletivas, o conhecimento das opiniões alheias faz parte do processo de formação das próprias opiniões. Em um ambiente de igualdade entre todos os votantes, o ideal seria que as eleições, como todas as deliberações comunitárias, fossem realizadas abertamente, em um claro confronto de posições. John Stuart Mill, para citar apenas um exemplo, afirmava que o eleitor teria “a obrigação moral absoluta de levar em consideração não o seu interesse pessoal, mas, sim, o interesse público, e de votar de acordo com o seu julgamento mais esclarecido (...). Admitindo isto, é uma conseqüência prima-facie o fato de que o dever de votar, como todos os outros deveres públicos, deve ser cumprido perante os olhos do público e exposto a sua crítica”.

No entanto, não é isso que acontece. Nossa Constituição Federal não apenas estabelece o segredo do voto nas eleições de representantes como inclui tal segredo entre suas cláusulas pétreas (aquelas cuja abolição sequer pode ser submetida a deliberação)2. Trata-se, aliás, de prática corriqueira nos regimes representativos contemporâneos, ao ponto de ser referida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948.

O segredo do voto, nas eleições de representantes, tem fundamento histórico e teórico conhecido. Em sendo público o conteúdo do voto, os eleitores que, na vida cotidiana, estivessem em situação de dependência, ficariam sujeitos ao comando de seus “chefes”.

Daí a luta das classes trabalhadoras no sentido de estabelecer, junto com a extensão do sufrágio, o segredo do voto, garantia da liberdade dos eleitores comuns contra as eventuais pressões de seus patrões. A perda de prestígio do voto a descoberto corresponde, portanto, em grande parte, à passagem de uma situação em que o eleitorado se restringia, basicamente, às camadas
proprietárias da sociedade para uma situação em que o voto se estende a proprietários e nãoproprietários.

No segundo caso, havendo uma grande disparidade de poder social entre os eleitores, a única forma de garantir a autonomia política dos trabalhadores é impedindo o controle individual do voto pelos patrões.

Essas considerações têm evidentes repercussões na discussão do voto secreto em deliberações de representantes. Por elas, fica claro que, de um ponto de vista muito abstrato, há razões para defender que o voto dos eleitores, tal como o dos representantes, sejaaberto. Percebe-se, por isso, que o voto secreto não assenta em motivações abstratas, mas na necessidade de preservar as decisões coletivas de disparidades de poder que possam influenciar perniciosamente o resultado final de qualquer deliberação realizada por meio de votos. Embora essa constatação não elimine, de nenhuma maneira, o fato de que o controle dos representados sobre os representantes, fundamento dos regimes representantivos contemporâneos, dependa, em medida não desprezível, do conhecimento que os primeiros tenham das posições dos segundos nas deliberações parlamentares, ela, certamente, aponta para um elemento que eventualmente pode justificar o segredo do voto mesmo nas deliberações dos representantes: a necessidade de preservar o resultado da votação da influência espúria de disparidades de poder.

sexta-feira, 29 de abril de 2011

VOTO ABERTO

Autor:   Adilson Abreu Dallari


O voto secreto é uma garantia fundamental da democracia. Por meio do voto secreto fica assegurada a manifestação livre da vontade do eleitor, que não deve sofrer qualquer constrangimento, e, ao mesmo tempo, fica afastada a possibilidade de compra do voto. Entretanto, é um pressuposto do voto secreto a absoluta liberdade de quem vota. Por essa razão, na Constituição Federal, art. 14, essa garantia é conferida ao cidadão, para o livre exercício de seus direitos políticos.
Essa plena liberdade de manifestação da vontade não existe nas votações parlamentares, motivo pelo qual não tem sentido algum estender a garantia do voto secreto aos mandatários políticos além daquilo que está expressamente previsto na Constituição Federal, podendo-se afirmar serem inconstitucionais as normas legais e regimentais que estabelecem o voto secreto no julgamento de Chefes de Executivo processados por acusação de cometimento de crime de responsabilidade. É o que se passa a demonstrar.

O primeiro princípio fundamental contido na Constituição Federal é o princípio republicano. República é o governo dos iguais. Por mais paradoxal que isso possa parecer, na república não há diferença substancial entre governantes e governados, como, por exemplo, existe na monarquia. Na república, aqueles que temporariamente e mediante mandato outorgado pelo corpo social, exercem o Poder, não se transformam em seres superiores, inimputáveis, como acontecia com o Imperador, quando vigente a Constituição Imperial de 1824, cujo art. 99 afirmava que ele não estava sujeito a responsabilidade alguma, por ser sua pessoa "inviolável e sagrada". A responsabilidade pelo atos praticados é inerente ao exercício do Poder no sistema republicano.

A responsabilidade política do Chefe do Poder Executivo, está efetivamente prevista no texto da Constituição Federal de 1988, arts. 85 e 86, nos quais está previsto que a tipificação dos crimes de responsabilidade e o seu processo serão definidos em lei especial, mas não há previsão alguma de que o julgamento seja feito mediante voto secreto. Isto não é uma simples omissão; não significa outorga de liberdade ao legislador ordinário para decidir. Trata-se, isto sim, do chamado silêncio eloqüente: a Constituição implicitamente proíbe o voto secreto nessa situação, pois quando o voto deve ser secreto ela assim estipula expressamente.

Registre-se, apenas, que a Lei nº 1.079, de 24/03/50, atualmente em vigor, em seu art. 31, estabelece que no julgamento do Presidente da República, a votação será nominal, o que significa, aberta, conforme efetivamente foi feito no julgamento do Presidente Fernando Collor. Da mesma forma, o Decreto-lei nº 201/67, que trata da responsabilidade dos Prefeitos, no art. 5º, VI, também determina a votação nominal.

Mais importante, porém, é salientar que a regra geral, na Constituição Federal, é a da votação em aberto, em consonância com o princípio da publicidade, previsto no art. 37, que é aplicável a todos os Poderes, em todos os níveis de governo. Até mesmo o Poder Judiciário, neutro, isento, soberano em suas decisões, nos termos do art. 93, IX e X, está sujeito às regras da publicidade de todos os julgamentos e da motivação (explicitação dos motivos) de todas as decisões. Quanto ao Poder Legislativo, no art. 53, está prevista a inviolabilidade de Deputados e Senadores por seus votos. Evidentemente isso não seria necessário se, por estipulação regimental, o voto pudesse ser sempre secreto.

Quando, para preservar a liberdade de atuação se faz necessário garantir o sigilo, a Constituição expressamente afirma que o voto será secreto, como é o caso das decisões do júri (art. 5º, XXXVIII, b). Poderá, excepcionalmente, haver sigilo, quando indispensável para preservar a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas (art. 5º, X).
Há, sim, expressa previsão de voto secreto para o julgamento, por seus pares, de Deputados e Senadores, em alguns casos, conforme previsto no § 2º, do art. 55. Somente nestes casos, para evitar constrangimentos e assegurar a livre manifestação de vontade é que, expressamente, taxativamente, se estipula o voto secreto. Onde não houver previsão expressa, deverá ser observada a regra geral da publicidade.
Diferentemente dos particulares, das pessoas privadas, os agentes públicos, e especialmente os titulares de mandato, devem dar satisfação de seus atos, devem estar sujeitos ao acompanhamento e controle de suas decisões. Enquanto pessoas físicas, no relacionamento social e familiar, devem ter a intimidade protegida; mas no exercício de função pública, quanto a atos praticados no exercício do mandato popular, estão submetidos à regra geral da publicidade, que é princípio fundamental da Administração Pública.
Isso se aplica aos agentes públicos em geral, mas com maior intensidade ao titulares de mandatos legislativos, pois estes não atuam, decidem ou votam, senão e exclusivamente na qualidade de representantes do povo. Todo mandatário deve prestar contas de seus atos ao mandante; o titular de mandato representativo está especialmente obrigado a evidenciar sua fidelidade aos seus constituintes.
Cabe lembrar que, no Brasil, ninguém pode se eleger sem estar filiado a um Partido Político. Partido é parte, facção, corrente de opinião. Ainda que (em função de interesses menores) ainda não tenha sido disciplinado o princípio constitucional da fidelidade partidária (CF, art. 17, § 1º), é certo que a inscrição eleitoral por Partido Político não pode ser havida como um nada jurídico, como se não existisse. A falta de sanção pela infidelidade não a transforma em direito; muito menos pode ser invocada como fundamento da violação ao princípio da publicidade, autorizando agir e decidir às escondidas, com potencial descumprimento do mandato representativo recebido.
Em São Paulo, o art. 10, § 2º, da Constituição estipula como regra geral o voto público nas decisões da Assembléia Legislativa, mas excepciona expressamente algumas situações em que o voto secreto é essencial para evitar constrangimentos e assegurar a liberdade de manifestação, agregando, porém, a tais situações excepcionais, em descompasso com a Constituição Federal, o julgamento do Governador, situação essa na qual devem prevalecer os princípios da publicidade e da representação inerente ao mandato legislativo.
Da mesma forma, a Lei Orgânica do Município de São Paulo, art. 35, determina o voto secreto no julgamento do Prefeito, em franca oposição à disciplina dada pela Constituição Federal ao julgamento do Presidente da República.
A autonomia política de Estados e Municípios está limitada pela necessária observância dos princípios estabelecidos na Constituição Federal. Quanto ao ponto específico em exame, conforme já foi visto, a Carta Magna estipula que o voto será secreto exclusivamente no julgamento de parlamentares por seus pares, mas não autoriza o julgamento sigiloso do Chefe do Executivo. É irrecusável, portanto, que tanto a Constituição Estadual quanto a Lei Orgânica Municipal, ao estabelecerem o voto secreto no julgamento, respectivamente, do Governador e do Prefeito, apresentam vício de inconstitucionalidade.
Seja permitido acrescentar uma pequena observação extra-jurídica: ao tempo da ditadura, no tempo dos generais-presidentes e dos governadores por eles escolhidos, o voto secreto no julgamento do Chefe do Executivo era uma forma de obter a liberdade política então inexistente. Atualmente, no momento em que estão perfeitamente em vigor todas as garantias constitucionais, quando não há risco algum em votar contra o governo, o voto secreto, nesse caso, milita em favor da infidelidade e da corrupção, em sentido contrário ao da democracia, violando a soberania popular.


Considerando que os princípios constitucionais não são meras declarações românticas, desprovidas de positividade, mas, sim, que, ao contrário, possuem força suficiente para determinar condutas e devem orientar a interpretação das normas isoladas, é certo que, caso ainda possa haver dúvida sobre a obrigatoriedade da votação nominal no julgamento do Chefe do Executivo, deve-se optar pela solução mais consentânea e que melhor se ajuste aos princípios da fidelidade, da moralidade, da democracia e da soberania popular.

A origem do Federalismo brasileiro

Autor: Alexis Sales de Paula e Souza

É indiscutível que a maneira pela qual o Estado organiza o seu território e estrutura o seu poder político depende da natureza e da história de cada país. A forma de organização do Estado – se unitário, federado ou confederado – reflete a repartição de competências, que leva em consideração a composição geral do país, a estrutura do poder, sua unidade, distribuição e competências no respectivo território.
No caso específico do federalismo, identificam-se dois tipos básicos. O primeiro é o federalismo por agregação que tem por característica a maior descentralização do Estado, no qual os entes regionais possuem competências mais amplas, como ocorre nos Estados Unidos da América do Norte (EUA). O segundo, é o federalismo por desagregação, onde a centralização é maior. O ente central recebe a maior parcela de poderes, como é o caso da federação brasileira.

Conceito de federação

O Estado Federal é conceituado como uma aliança ou união de Estados. A própria palavra federação, do latim foedus, quer dizer pacto, aliança. Montesquieu, em seu clássico "O Espírito das Leis", escreveu que a república federativa é uma forma de constituição que possui todas as vantagens internas do governo republicano e a força externa da monarquia. Segundo o filósofo, essa "forma de governo é uma convenção segundo a qual vários Corpos políticos consentem em se tomar cidadãos de um Estado maior que pretendem formar. É uma sociedade de sociedades, que formam uma nova sociedade, que pode crescer com novos associados que se unirem a ela."
Ao conceituar federação, Kelsen escreveu que apenas o grau de descentralização diferencia um Estado unitário dividido em províncias autônomas de um Estado federal.
Segundo o ilustre doutrinador, o Estado federal caracteriza-se pelo fato de o Estado componente possuir certa medida de autonomia constitucional. O órgão legislativo de cada Estado componente tem competência em matérias referentes a constituição dessa comunidade, de modo que modificações nas constituições destes Estados podem ser efetuadas por estatutos dos próprios Estados componentes.
Por seu turno, no Estado unitário relativamente descentralizado as províncias autônomas não possuem autonomia constitucional. Sua norma fundamental é prescrita pela constituição do Estado unitário como um todo e só pode ser modificada por meio de uma modificação nessa constituição. As unidades possuem apenas competência para a legislação provincial, dentro do que a constituição do Estado unitário prescrever. A legislação em matérias da constituição é totalmente centralizada, ao passo que, no Estado federal, ela é centralizada apenas de modo incompleto, ou seja, até certo ponto, ela é descentralizada.
Portugal e Espanha são exemplos de estados unitários descentralizados. Em Portugal os arquipélagos dos Açores e da Madeira constituem regiões autônomas. O artigo 225 da Constituição Portuguesa estabelece que devido às suas características geográficas, econômicas, sociais e culturais essas unidades possuem autonomia político-administrativa, a qual será exercida dentro dos limites da Constituição Portuguesa e sem afetar a integridade e a soberania do Estado Português.
Já o sistema espanhol é mais flexível que o português. O art. 137 da Constituição da Espanha estabelece que o Estado organiza-se em municípios, províncias e comunidades autônomas. Todos possuem autonomia para gestão de seus interesses. Especificamente em relação às comunidades autônomas, o art. 147 prevê que a norma institucional básica destas unidades será elaborada dentro dos limites da Constituição espanhola e farão parte do ordenamento jurídico do Estado espanhol. No art. 148 a Carta da Espanha enumera as matérias sujeitas à competência das comunidades autônomas.
Dallari ensina que, em qualquer época da história humana, encontram-se referências a alianças entre Estados. Segundo o doutrinador, alguns autores defendem que o primeiro exemplo dessa união total e permanente foi a Suiça. Três Cantões celebraram em 1291 um pacto de amizade e de aliança, formando a Confederação Helvética.
Apesar disso, conforme Dallari, o Estado Federal nasceu com a Constituição dos EUA, em 1787, quando as treze colônias se uniram em um só país para fazer frente às metrópoles da época. Muito embora a Confederação Helvética tenha sido formada em 1291, permaneceu restrita quanto aos objetivos e ao relacionamento entre os participantes até o ano de 1848, quando a Suíça se organizou como Estado Federal.
Em resumo, pode-se afirmar que o Estado Federal é aquele que permite maior grau de descentralização do poder, pois se organiza mediante a coexistência de mais de um centro de poder detentor de autonomia política, administrativa e legislativa. O pressuposto do federalismo é a repartição de responsabilidades governamentais de modo a assegurar a integridade do Estado nacional frente às inúmeras disputas e desigualdades regionais.
O federalismo não nasce da mesma forma em todos os países. Cada Estado tem uma história que caracteriza o seu tipo de federação. Kelsen escreve que só é possível reconhecer um Estado federal pelo conteúdo de sua constituição positiva concreta, no caso de a essência do Estado federal ser concebida com um grau particular e uma forma específica de descentralização. A partir desse ponto de vista, Kelsen pontua que o modo de criação do Estado é irrelevante: quer tenha ele passado a existir por meio de um tratado internacional (estabelecendo a constituição federal) entre Estados até então soberanos, i.e., Estados Subordinados apenas à ordem jurídica internacional, ou pelo ato legislativo de um Estado unitário transformando-se em Estado federal através do aumento do seu grau de descentralização.
Ao analisar o contexto histórico dos dezesseis países que adotaram o federalismo, José Luiz Quadros de Magalhães identificou três matrizes segundo o nível das relações intergovernamentais entre os entes federados: "a) o federalismo dual, modelo original dessa forma de organização elaborada e implementada nos EUA; b) o federalismo centralizado, transformação do modelo dual em que as unidades subnacionais se tornam, praticamente, agentes administrativos do governo central, como no período das medidas de intervenção do New Deal e; c) o federalismo cooperativo, em que as unidades subnacionais e o governo nacional têm ação conjunta e capacidade de autogoverno, como na Alemanha."
José Afonso da Silva ensina que o grau de descentralização do poder é fixado na Constituição de cada Estado. O autor denomina de federalismo centrípeto, se a concepção constituinte inclinar-se pelo fortalecimento do poder central; de federalismo centrífugo, se a Constituição fixar-se na preservação do Poder Estadual e Municipal; e, finalmente, de federalismo de cooperação, se o constituinte optar pelo equilíbrio de forças entre o poder central e local.
Nas Resoluções de Kentucky de 1798 e 1799, Thomas Jefferson estabelece a importância da descentralização do poder, num federalismo centrífugo, como instrumento de reconhecimento, valorização e institucionalização da formação natural de comunidades, verbis:
As Constituições brasileiras de 1891, 1937, 1946, 1967 e 1988 afirmaram a forma republicana do Estado. No entanto, o desenvolvimento do processo histórico da estrutura política do Estado brasileiro revela um processo cíclico de centralização do poder. A forma unitária do Estado monárquico é a gênese de uma tradição política centralizadora, que mitigou todas as iniciativas de descentralização.
Durante o período colonial o Brasil foi dividido administrativamente em capitanias, as quais foram transformadas em províncias em 1821. Com a independência, a Constituição de 1824 manteve as mesmas divisas entre as províncias e não alterou os seus poderes. De fato, a Carta de 1824 previa que os governos das Províncias seriam seriam presididos por pessoas nomeadas pelo Imperador
e que todo cidadão tinha o direito de intervir nos negócios da sua localidade, nas Câmaras dos Distritos e no Conselho Geral da Província
. As Câmaras dos Distritos tinham a competência de gerir a economia dos municípios.
Por seu turno, os Conselhos Gerais das Províncias tinham competência para aprovar normas específicas para gerir os negócios da Província.
Em 1831, D. Pedro I abdica do trono, em meio ao movimento das elites agrárias regionais contra o excessivo centralismo do monarca. A movimentação pela maior descentralização e a criação de um regime provincial continuou até que em 1834, por intermédio de Ato Adicional, foi aprovada a Lei n.º 16, de 12/8/1834, que emendou a Constituição do Império para criar uma Monarquia representativa. Adaptando princípios federalistas, os Conselhos Gerais das Províncias foram substituídas por Assembleias Legislativas
. Essa mudança aumentou a descentralização do Estado brasileiro, garantindo às Províncias funções executivas e legislativas. Alguns historiadores chegaram a conceber, em face da evidente descentralização após 1834, o surgimento de um "Império Federado".
Com a Proclamação da República em 1889, os movimentos contrários à política do governo imperial foram definitivamente vitoriosos. O Governo Provisório expediu o Decreto nº 1, de 15/11/1889, instituindo a federação, transformando as antigas Províncias em Estados membros e criando os "Estados Unidos do Brazil".
O Governo Provisório obrigou nos arts. 6º e 7º do Decreto n.º 1, de 1889, as antigas Províncias transformadas em Estados membros a integrar a nova federação.
Posteriormente, a Constituição de 1891 trouxe no art. 1º a República Federativa como forma de governo e a regra da união perpétua e indissolúvel dos Estados membros. A Carta também instituiu o patrimônio de cada unidade federativa e adotou na repartição constitucional de competências a técnica de poderes enumerados e reservados. Os poderes dos Estados membros em matéria tributária foram fixados na Constituição, porém permitiu-se aos entes no art. 65 exercer "todo e qualquer poder, ou direito que lhes não for negado por clausula expressa ou implicitamente contida nas clausulas expressas da Constituição" . A Carta de 1891 manteve a obrigação dos Estados membros de formarem a federação brasileira, independentemente da vontade das populações locais, e previu, no art. 6º, a possibilidade de intervenção da União nos entes federados para garantir à força a manutenção da federação.
Nos anos 30, durante o período Vargas, observou-se a volta do centralismo, com a restrição da autonomia administrativa e política dos Estados membros. O Decreto n.º 19.398, de 11/11/1930, dissolveu o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas Estaduais e as Câmaras Municipais, cassou os mandatos de todos os Governadores e Prefeitos e nomeou interventores em cada Estado membro. O Decreto também previu a competência dos Interventores Estaduais para nomear os Interventores nos municípios. Dos atos dos Interventores Estaduais só cabia recurso ao Presidente da República. interessante observar que apesar de todo o centralismo, o Decreto n.º 19.398 fez questão de manter em vigor as Constituições e as Leis Estaduais, de reforçar a autonomia financeira dos Estados membros e de garantir que a nova constituição a ser elaborada manteria o sistema federativo.
Outorgada por Getúlio Vargas, a Constituição de 1937 manteve no art. 21 a competência remanescente dos Estados membros e ampliou as hipóteses de intervenção da União nos entes federados. Havia, também, um dispositivo que previa a transformação do Estado membro em território da União se não fosse capaz de arrecadar receita suficiente para manutenção dos seus serviços, por três anos consecutivos.
A Constituição de 1946 devolveu formalmente a autonomia administrativa e política aos Estados membros. Isso, no entanto, foi novamente afetado pelo Golpe Militar de 1964. A Constituição de 1967/1969 construiu um federalismo meramente nominal, pois a competência da União era de tal forma dilatada que pouco restava para os Estados federados.
Sobre a Constituição de 1988, José Afonso da Silva escreve que a nova Carta buscou resgatar o princípio federalista e estruturou um sistema de repartição de competências que tentou refazer o equilíbrio das relações entre o poder central e os poderes estaduais e municipais.
No entanto, a par de resgatar o princípio federalista, a Constituição de 1988 centralizou na União a maioria das competências. Com efeito, o rol dos artigos 21 e 22 é tão extenso que deixa pouca margem para os Estados membros.
Além disso, o art. 25 previu que os Estados membros "organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem", observados os princípios da Constituição. Quanto a isso, a doutrina identifica dois tipos de normas presentes nas Constituições Estaduais, as de reprodução obrigatória e as de imitação.
As normas de reprodução obrigatória são aquelas cuja inserção na Constituição Estadual é compulsória. Nesse caso, a tarefa do constituinte estadual limita-se a inserir aquelas normas no ordenamento constitucional do Estado membro, por um processo de transplantação. Já as normas de imitação representam aquelas cujo conteúdo é idêntico às das regras constitucionais federais, mas não há obrigatoriedade de sua reprodução nas Constituições dos Estados membros. Nesses casos a adesão é voluntária.
O problema reside no fato de que o conceito jurídico de norma de reprodução obrigatória é indeterminado e que a jurisprudência acaba por determinar no caso concreto. Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF), os limites constitucionalmente estabelecidos para o poder constituinte estadual determinam que um núcleo central da Constituição Federal seja obrigatoriamente reproduzido na Constituição do Estado membro.
O federalismo nos EUA não surgiu como no Brasil. Naquele país a federação teve origem centrífuga, pois garantiu a maioria das competências dos Estados. As colônias britânicas aliaram-se, declararam-se independentes e celebraram entre si um tratado internacional, em 1777, criando uma Confederação e União Perpétua para preservar a independência. O tratado, no art. 10, reservava aos Estados tudo o que não fosse expressamente outorgado aos Estados Unidos, verbis: "Art. X. The power not delegated to the United States by the Constitution, nor prohibited by it to the states, are reserved to the states respectively or to the people".
O artigo 2º do referido Tratado previa ainda a possibilidade de dissolver o vínculo Confederativo pelo exercício do direito de secessão, verbis: "Art. II. Each state retains its sovereignty, freedom and independence, and every Power, Jurisdiction and right, which is not by this confederation expressly delegated to the United States, in Congress assembled."A confederação só desapareceu com a ratificação da Constituição Republicana de 1789 que criou a federação e extinguiu a possibilidade de secessão.
No Brasil, ao contrário dos EUA, partiu-se de uma ordem centralizada, que era o Estado unitário do período imperial, para uma ordem federativa de divisão de poderes e competências em 1889, num processo centrípeto. A conversão do Estado unitário em Estado federado foi um processo lento e gradual. Houve uma adaptação dos princípios e instituições federalistas, de modo a manter os interesses e privilégios das elites agrárias, industriais e burocráticas, que organizaram a independência e controlavam o Império.
A ideia de descentralização administrativa no Brasil era antiga e retrocedia ao início da colonização. Os Forais de Capitania já previam a possibilidade de se adquirir "direitos, foros, tributos e coisas que na dita terra se hão de pagar". Como se observa, as reivindicações de descentralização do poder tinham suporte na realidade administrativa brasileira. Chegamos mesmo a ter uma monarquia com ares de federação, com o Ato Adicional de 1837.
Apesar disso, a experiência brasileira sempre foi marcada por um forte centralismo, que provocava a dependência dos entes subnacionais ao governo central. O discurso de Rui Barbosa no Congresso Nacional, intitulado "Organização das Finanças Republicanas", proferido em 1890, resume bem o pensamento dos formadores da federação brasileira, verbis:
Senhores, não somos uma federação de povos até ontem separados, e reunidos de ontem para hoje. Pelo contrário, é da união que partimos. Na união nascemos. Na união se geraram e fecharam os olhos nossos pais. Na união ainda não cessamos de estar. Para que a união seja a herança de nossa descendência, todos os sacrifícios serão poucos. A união é, talvez, o único benefício sem mescla, que a monarquia nos assegurou. E um dos mais terríveis argumentos, que a monarquia ameaçada viu surgir contra si, foi o de que o seu espírito centralizador tendia a dissolver a união pela reação crescente dos descontentamentos locais. Para não descer abaixo do Império, a República, a Federação, necessita de começar mostrando-se capaz de preservar a União, pelo menos tão bem quanto ele. Quando, sob as últimas trevas do regímen extinto, começou a alvorecer entre nós a aspiração federalista, o mais poderoso espantalho agitado pela realeza contra ela era a desintegração da pátria, a dissolução da nossa nacionalidade pelo gênio do separatismo inerente, segundo os seus inimigos, à forma federativa. Esse receio foi o grande embaraço, que obstou por longo tempo o bom êxito das esperanças republicanas; e, se hoje o rumo de nossos primeiros passos não desvanecer essas apreensões; se as primeiras medidas adotadas pelo Congresso não demonstrarem que o mais firme dos nossos propósitos é manter inteira, incólume, indivisível, sob um forte governo nacional, a grande pátria brasileira, então a república terá sido a mais dolorosa de todas as decepções para os amigos do país.
A Constituição Federal de 1988 definiu no art. 3º a base do Estado federativo brasileiro, a partir de uma matriz cooperativa de repartição de competências, em que coexistem competências privativas, concorrentes e suplementares entre os entes federados, tanto nos aspectos legislativos, quanto nos aspectos administrativos e tributários.
Miguel Reale ensina que na construção do Estado Brasileiro o legislador pátrio concebe três círculos distintos de ação que se completam e se integram, "formando, no seu todo, a República Federativa do Brasil, segundo os princípios do chamado federalismo cooperativo, ou integrado".
Sobre o conceito de autonomia, a Ministra Carmem Lúcia ensina que o termo, em sua etimologia, significa "a faculdade conferida ou reconhecida a uma entidade de criar as suas próprias normas. Daí o entendimento mais comumente aceito no Direito de constituir autonomia a capacidade política de uma entidade para governar-se a si mesma segundo leis próprias, criadas em esfera de competência definida por um poder soberano".
Todavia, não basta a previsão constitucional de um federalismo cooperativo. Para que estados e municípios tenham real autonomia política, é necessário que possuam autonomia administrativa e financeira. Em outras palavras, a existência real da autonomia depende da existência de recursos suficientes e não sujeitos a condições, para que possam desempenhar suas atribuições. Sem recursos suficientes a autonomia existirá apenas no papel.
O Ministro Celso Mello, no julgamento da ADI 507-3/DF, ensinou que no modelo federal de Estado existe um antagonismo entre a tendência à centralização e o movimento de descentralização e, em razão disso, o Estado federal não se apresenta uno e nem uniforme. Conforme o Ministro o "Estado Federal exprime, no plano da organização jurídica, a síntese que decorre de dois movimentos que se antagonizam: a tendência à unidade ou à centralização, que se rege pelo princípio unitário, e a tendência à pluralidade, ou à descentralização, que se funda no princípio federativo. Do maior ou menor equilíbrio entre esses dois princípios, resultará, em cada hipótese, um modelo diverso de Estado Federal, quer caracterizado por um grau de maior centralização, quer tipificado por um coeficiente de maior descentralização relativamente ao exercício do poder político".
Se por um lado a Constituição de 1988 significou a possibilidade de fortalecimento de um pacto federativo, por outro também é verdade que as instituições, por conivência ou por incapacidade, não foram capazes de frear a voracidade centralista da União. Não se vê no Poder Central vontade política de criar um equilíbrio federativo efetivo, que estabeleça a capacidade financeira dos 27 Estados membros e dos 5.507 Municípios brasileiros, de maneira a criar um padrão mínimo de igualdade na prestação dos serviços.
Essa voracidade centralista tem sua expressão maior na fixação dos tributos e na repartição das receitas. Com efeito, a Carta de 1988 adotou o critério de fixar em rol taxativo os tributos que Estados e Municípios podem instituir e cobrar. Já para a União a Constituição reservou no artigo 154 a competência residual de criar outros impostos além dos relacionados no art. 153. Como se não bastasse, a Carta submeteu os impostos estaduais e municipais a regramento a ser editado pela União, conforme se observa no art. 155, incisos III e IV do § 1º, incisos IV, V e XII do § 2º e § 6º, e no art. 156, § 3º.
Visando corrigir as desigualdades regionais do Brasil e atendendo ao federalismo cooperativo prescrito no art. 3º, a Constituição previu nos arts. 157 a 162 a repartição de receitas como maneira de dividir o produto da arrecadação de forma equilibrada entre os diversos entes da federação. A Carta estabeleceu a distribuição de percentuais da receita da União com o Imposto de Renda (IR), com o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e com a contribuição de intervenção no domínio econômico prevista no § 4º do art. 177.
A fórmula de partilha das receitas tributárias criada pelo constituinte originário não funcionou. A União, num processo iníquo, foi substituindo os impostos que é obrigada a repartir com Estados e Municípios por contribuições que não estão sujeitas a essa partilha. Essas contribuições, muitas vezes, possuem identidade de fatos geradores de impostos de Estados e Municípios, contrariando a repartição de competências da Constituição. Com isso, criou-se um desequilíbrio em prol da União, que passa a deter a primazia na Federação brasileira, o que conduz a uma tendência crescente de supressão da autonomia dos Estados e Municípios e de centralização de poder, em evidente desrespeito ao pacto federativo.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), observam-se duas coisas, a saber.
Primeiro, a União arrecada cerca de 70% dos tributos no Brasil. Em 2008, os tributos federais totalizaram R$ 739,68 bilhões (70%), os estaduais R$ 270,12 bilhões (25,56%) e os municipais R$ 46,84 bilhões (4,43%). Em 2009, a proporção não se alterou. Os tributos federais representaram 69,54% (R$ 759,88 bilhões) do total arrecadado, enquanto os tributos estaduais representaram 25,88% (R$ 282,73 bilhões) e os municipais 4,58% (R$ 50,05 bilhões).
Segundo, o potencial arrecadatório das contribuições é muito maior do que o dos impostos federais. De acordo com dados do IBPT, em 2008 a União arrecadou com contribuições 60% a mais do que arrecadou em impostos. Em 2009, essa proporção aumentou para 76%, .
Depreende-se dessa análise que se tem no Brasil um federalismo que tende ao centralismo ou, como dizem alguns, um federalismo unitário, pois a falta clareza quanto às competências, vez que estas se entrelaçam ou se superpõem, permite à União abocanhar cada vez mais competências. Com isso, o ente Central estabelece cada vez mais condições que precisam ser cumpridas pelos Estados membros.
É essencial conferir aos Estados e Municípios a capacidade de formular e implementar políticas públicas. Sem equilíbrio entre autonomia política/administrativa e autonomia financeira, a ideia de pacto federativo é vazia, ou, como diriam alguns, um "federalismo a brasileira.Parte inferior do formulário
fonte: http://jus.uol.com.br/revista/texto/17486/a-origem-do-federalismo-brasileiro

quarta-feira, 27 de abril de 2011

LÍNGUA - VIDAS EM PORTUGUÊS (FILME)




Documentário que reune a opinião de artistas, e um pouco do cotidiano de gente comum, centrando-se em como a língua portuguesa e a colonização deste povo influi e integra a vivência destas pessoas.

O “ser” lusitano – ainda que apenas descendente ou por criação – é aqui investigado de maneira fascinante para qualquer falante desta língua: não há como não se emocionar ao se dar conta de que, apesar das evidentes e inevitáveis diferenças, há afinidades eletivas que nos unem todos, e nos quais podemos nos reconhecer mutuamente – o desprendimento, a tradicão da refeição do “café” à mesa, a fé desmedida na religião, o amor pela música. Quando se concentra em pessoas anônimas, o diretor Victor Lopes prefere não indagar sobre a língua e o lusitanismo, preferindo evitar uma filosofia popularesca e ocupando-se em montar um breve painel da personalidade delas e do cotidiano vivido por estas pessoas. Desta forma, Lopes atingiu seu objetivo mesmo sem tocar propriamente no assunto, utilizando-as como ilustração da discussão formada pelos protagonistas mais famosos do documentário. E é quando o assunto entra em pauta que os momentos de maior beleza surgem: Teresa Salgueiro e Pedro Ayres Magalhães – da banda Madredeus – , o compositor Martinho da Vila, os escritores Mia Couto, José Saramago e João Ubaldo Ribeiro falam de maneira franca sobre esta alma coletiva que habita todos aqueles que pertençam de alguma maneira aos povos lusitanos. Tão intraduzível para todos os outros povos quanto a palavra “saudade”, somente os que tem a sorte de integrar uma das culturas mais ricas, belas e anfitriãs do mundo tem a capacidade de compreendar a totalidade do que está ali tão bem retratado. Documentário de apreciação obrigatória para todos àqueles que compreendem o quanto é maravilhoso ser um dos mais de 200 milhões de lusos pelo mundo.

terça-feira, 26 de abril de 2011

O ABSOLUTISMO

Absolutismo é uma teoria política que defende que uma pessoa (em geral, um monarca) deve obter um poder absoluto, isto é, independente de outro órgão, seja ele judicial, legislativo, religioso ou eleitoral. Os teóricos de relevo associados ao absolutismo incluem autores como Maquiavel, Jean Bodin, Jaime I de Inglaterra, Bossuet e Thomas Hobbes. Esta idéia tem sido algumas vezes confundida com a doutrina protestante do "Direito Divino dos Reis", que defende que a autoridade do governante emana diretamente de Deus, e que não podem ser depostos a não ser por Deus, defendido por alguns absolutistas como Jean Bodin, Jaime I e Jacques Bossuet.
Em Portugal, o absolutismo passou por várias fases do desenvolvimento num sentido crescente do aumento de autoridade e concentração do poder nas mãos dos reis, atingindo o seu auge no reinado de João V. Contudo, não se pode determinar com muita precisão o período em que a monarquia portuguesa já se encontra estruturada em bases absolutistas. Essa questão é difícil de datar porque as raízes do poder monárquico foram se desenvolvendo aos poucos, em várias estruturas e crescendo ao longo de três séculos. Outrora, devemos entender o regime absolutista português como um processo de longa duração, e ao decorrer de toda a Época Moderna, colheu frutos do prestígio que tinha em seu território.
A Espanha conheceu em 1469 a unificação política com o casamento da rainha Isabel de Castela com o rei Fernando de Aragão. Unificado, o reino espanhol reuniu forças para completar a expulsão dos mouros e, com a ajuda da burguesia, lançar-se às grandes navegações marítimas.
Na França, o longo processo de centralização do poder monárquico atingiu seu ponto culminante com o rei Luís XIV, conhecido como "Rei Sol", que reinou entre 1643 e 1715. A ele atribui-se a célebre frase "o Estado sou eu". Ao contrário de seus antecessores, recusou a figura de um "primeiro-ministro", reduziu a influência dos parlamentos regionais e jamais convocou os Estados Gerais.
Na Inglaterra, o absolutismo teve início em 1509 com Henrique VIII, que apoiado pela burguesia, ampliou os poderes monárquicos, diminuindo os do parlamento. No reinado da Rainha Elisabeth I, o absolutismo monárquico foi fortalecido, tendo iniciado a expansão marítima inglesa, com a colonização da América do Norte. Contudo, após a Guerra Civil Inglesa, o Absolutismo perdeu força em Inglaterra, com o rei gradualmente perdendo poderes em favor do Parlamento. A Revolução de 1688 - a "Revolução Gloriosa" - pôs um ponto final no absolutismo inglês.
Teóricos do absolutismo
Durante os séculos XVI e XVII, diversos pensadores buscaram justificar o poder absoluto dos monarcas. A principal obra de Nicolau Maquiavel, O príncipe, escrita para responder a um questionamento a respeito da origem e da manutenção do poder, influenciou os monarcas europeus, que a utilizaram para a defesa do absolutismo. Maquiavel defendia o Estado como um fim em si mesmo, afirmando que os soberanos poderiam utilizar-se de todos os meios - considerados lícitos ou não - que garantissem a conquista e a continuidade do seu poder. As ações do Estado são regidas, sobretudo, pela racionalidade.
Jean Bodin, sua obra foi Os seis livros da República, associava o Estado à própria célula familiar, colocando o poder real como ilimitado, comparado ao chefe de família.
Jacques-Bénigne Bossuet, contemporâneo de Luís XIV, foi um dos maiores defensores do absolutismo e, simultaneamente, do "direito divino dos reis"; em sua obra Política Segundo a Sagrada Escritura, afirmava que a Monarquia era a origem divina, cabendo aos homens aceitar todas as decisões reais, pois questioná-las transformá-los-ia não somente em inimigos públicos, mas também em inimigos de Deus.
Thomas Hobbes, autor de Leviatã, proclamou que, em seu estado natural, a vida humana era "solitária, miserável, desprezível, bestial e breve"; buscando escapar da guerra de todos contra todos, os homens uniram-se em torno de um contrato para formar uma sociedade civil, legando a um soberano todos os direitos para protegê-los contra a violência. Hobbes defende a teoria de que um rei só poderia subir ao trono pela vontade do povo e não pela vontade divina. A Monarquia é justificada pelo consenso social.
Hugo Grotius é considerado um dos precursores do direito universal, pois defendia que, se todos os países adotassem o Absolutismo, seria possível se estabelecer um sistema único de legislação. Sua principal obra foi Direito de Paz e de Guerra.
O Absolutismo e a Guerra
O Estado absolutista foi um processo importante para a modernização administrativa de certos países. No campo militar, embora tenha apresentado alguns pontos fracos, foi responsável por grandes transformações. A centralização administrativa e financeira praticamente extinguiu os exércitos mercenários, sem no entanto dispensar o emprego de estrangeiros. Criou uma burocracia civil que muito ajudou à manutenção de forças armadas. Desenvolveu formas compulsórias de alistamento que serviriam de base para o serviço militar moderno. Regulamentando o alistamento, diminuiu velhos abusos. Financiou e abasteceu efetivos cada vez maiores. Permitiu, por fim, a construção de dezenas de fortificações modernas. Defendia a tese de que era necessário um Estado Forte para controlar e disciplinar a sociedade.