Autor: Robertônio Santos Pessoa
O pensamento jurídico-político hegeliano parece conferir uma grande importância à distinção direito público-direito privado, constantemente presente na literatura jurídica. De fato, a contraposição entre o "público" e o "privado" foi uma tônica no sistema hegeliano, desde as suas primeiras formulações.
Aqui uma advertência se impõe. Hegel abandona nesta questão a terminologia tradicional, tal como presente nos jusnaturalistas até Kant. Nele, a palavra "direito", ou "direito abstrato", significa geralmente "direito privado", enquanto a matéria hoje atribuída ao "direito público" é abordada sob a expressão Constituição. Por outro lado, o trato da matéria em Hegel também é diferenciado, quando comparado à abordagem de matriz jusnaturalista. Em Hegel, ao contrário das exposições jusnaturalistas, o direito privado não tem nenhuma autonomia em relação ao direito público-estatal. Pelo contrário, tem neste seu fundamento. Tal postura guarda estreita coerência com os princípios da filosofia hegeliana.
No pensamento de Hegel ocorre um uso axiológico da dicotomia público-privado, segundo o qual o público corresponde a um momento positivo, tanto do ponto de vista histórico como conceitual, enquanto o privado, quando suplanta o público, representa o momento negativo. Tal orientação prevalecerá em sua teoria político-jurídica.
De fato, as categorias de "público" e "privado", adotadas como categorias de filosofia da história, passarão com função análoga ao direito. Desta forma, para Hegel, o direito privado é subalterno ao direito público. Tal posição terá inúmeros reflexos e desdobramentos em suas obras sistemáticas, históricas e políticas, tornando até certo ponto singular e diferenciada sua teoria política e jurídica, mormente quando comparada à grande tradição jusnaturalista.
O primeiro deles refere-se a polêmica travada com as teorias contratualistas aplicadas ao direito público, em especial a teoria do contrato social. Com efeito, sendo o contrato e a propriedade os dois principais institutos do direito privado, tais institutos não se conformam aos problemas do Estado. Hegel critica veementemente as doutrinas privatistas do Estado. Diz ele: "A intrusão deste (ou seja, do contrato) ou, em geral, das relações de propriedade privada na relação estatal, produziu as maiores confusões no direito público e na realidade". Hegel elenca diversos argumentos para tal refutação. Segundo ele, o contrato procede do arbítrio de dois contraentes, enquanto o Estado não, derivando de uma força superior, não arbitrária, de uma vontade universal. Por outro lado, enquanto o contraente singular pode romper o vínculo contratual, o cidadão não pode subtrair-se por sua vontade ao império do Estado. Por fim, se o Estado deve visar ao interesse geral e não aos interesses particulares dos indivíduos, o mesmo não se pode resumir à soma das vontades individuais. Para Hegel, o Estado é regido por princípios fundamentais, segundo determinações universais, devendo os particulares a elas se conformarem Observe-se, neste sentido, que a crítica feita ao "contratualismo" é de natureza racional, conceitual, e não meramente histórica, como já se havia procedido então.
Da mesma forma que considerou "negativa" a sucessão da religião grega, de natureza pública, pela religião cristã, de caráter privado, Hegel, em seus escritos históricos, caracteriza como épocas de decadência os períodos históricos em que o direito privado suplantou o direito público. Tais épocas foram sobretudo duas: o império romano e a idade média. Tais épocas, por motivos históricos diversos, constituíram uma cisão de uma unidade anterior, uma atomização, uma decomposição das partes de um todo orgânico, uma dissolução da totalidade, uma morte da vida ética (eticidade), um triunfo dos particularismos sobre a universalidade, dos interesses privados sobre os interesses gerais. Hegel afirma que "a totalidade é estilhaçada na escravidão dos particularismos privados". Assim, na fase imperial romana, percebe-se um nítido desenvolvimento do direito privado, enquanto avulta a figura do Imperador como tutor do corpo político, desfazendo-se a república (res pública).
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