Autor: Márcio Nuno Rabat
Nos regimes representativos contemporâneos, o método dominante de escolha dos representantes políticos de uma coletividade nacional ou subnacional é o voto da totalidade da população adulta (o sufrágio universal). Nas casas legislativas, compostas de representantes eleitos, o método dominante de tomada de decisões é também o voto da totalidade dos membros. Em ambos os casos, a regra é que cada votante detém um voto de igual peso na decisão final. Essa semelhança formal não deixa de corresponder a semelhanças materiais entre os dois níveis decisórios; no entanto, ela também oculta diferenças significativas.
A distinção mais importante entre ambos os níveis diz respeito ao fato de que os eleitores, ao escolherem seus representantes, atuam em nome próprio, enquanto os representantes, ao tomarem decisões, atuam em nome dos representados. Essa distinção tem conseqüências óbvias para o problema do segredo do voto. O eleitor, ao votar em um candidato, expressa diretamente sua vontade; o representante, ao participar de uma deliberação parlamentar, expressa ou constrói a vontade dos representados (ou do povo). O eleitor não é mandatário de ninguém, e a ninguém presta contas de seu voto; o representante, não por acaso chamado de detentor de mandato ou mandatário, deve, em princípio, prestar contas de seus votos aos mandantes. Com essa distinção, fica estabelecida a principal razão pela qual o voto do representante, em regra, deve ser conhecido do representado, enquanto o voto do eleitor não precisa dessa transparência.
Algumas dúvidas, no entanto, não são esclarecidas pelo mero recurso a tal distinção. Assim, o fato de que o eleitor não presta contas de seu voto explica por que o conteúdo desse voto pode ser secreto, mas não explica por que ele não deve ser público. Afinal, em princípio, nas deliberações coletivas, o conhecimento das opiniões alheias faz parte do processo de formação das próprias opiniões. Em um ambiente de igualdade entre todos os votantes, o ideal seria que as eleições, como todas as deliberações comunitárias, fossem realizadas abertamente, em um claro confronto de posições. John Stuart Mill, para citar apenas um exemplo, afirmava que o eleitor teria “a obrigação moral absoluta de levar em consideração não o seu interesse pessoal, mas, sim, o interesse público, e de votar de acordo com o seu julgamento mais esclarecido (...). Admitindo isto, é uma conseqüência prima-facie o fato de que o dever de votar, como todos os outros deveres públicos, deve ser cumprido perante os olhos do público e exposto a sua crítica”.
No entanto, não é isso que acontece. Nossa Constituição Federal não apenas estabelece o segredo do voto nas eleições de representantes como inclui tal segredo entre suas cláusulas pétreas (aquelas cuja abolição sequer pode ser submetida a deliberação)2. Trata-se, aliás, de prática corriqueira nos regimes representativos contemporâneos, ao ponto de ser referida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948.
O segredo do voto, nas eleições de representantes, tem fundamento histórico e teórico conhecido. Em sendo público o conteúdo do voto, os eleitores que, na vida cotidiana, estivessem em situação de dependência, ficariam sujeitos ao comando de seus “chefes”.
Daí a luta das classes trabalhadoras no sentido de estabelecer, junto com a extensão do sufrágio, o segredo do voto, garantia da liberdade dos eleitores comuns contra as eventuais pressões de seus patrões. A perda de prestígio do voto a descoberto corresponde, portanto, em grande parte, à passagem de uma situação em que o eleitorado se restringia, basicamente, às camadas
proprietárias da sociedade para uma situação em que o voto se estende a proprietários e nãoproprietários.
No segundo caso, havendo uma grande disparidade de poder social entre os eleitores, a única forma de garantir a autonomia política dos trabalhadores é impedindo o controle individual do voto pelos patrões.
Essas considerações têm evidentes repercussões na discussão do voto secreto em deliberações de representantes. Por elas, fica claro que, de um ponto de vista muito abstrato, há razões para defender que o voto dos eleitores, tal como o dos representantes, sejaaberto. Percebe-se, por isso, que o voto secreto não assenta em motivações abstratas, mas na necessidade de preservar as decisões coletivas de disparidades de poder que possam influenciar perniciosamente o resultado final de qualquer deliberação realizada por meio de votos. Embora essa constatação não elimine, de nenhuma maneira, o fato de que o controle dos representados sobre os representantes, fundamento dos regimes representantivos contemporâneos, dependa, em medida não desprezível, do conhecimento que os primeiros tenham das posições dos segundos nas deliberações parlamentares, ela, certamente, aponta para um elemento que eventualmente pode justificar o segredo do voto mesmo nas deliberações dos representantes: a necessidade de preservar o resultado da votação da influência espúria de disparidades de poder.
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