Autor: Márcio Nuno Rabat
Não é incomum que a adoção do voto secreto nos parlamentos seja justificada em função da divisão de poderes dentro do Estado. Seja como resquício da desconfiança da burguesia européia ascendente contra o ainda poderoso executivo monárquico (muitas vezes de extração aristocrática), seja pela experiência prática recente da força do poder executivo dentro da organização política dos Estados contemporâneos, a defesa do voto secreto no parlamento muitas vezes se apoiou na necessidade de impedir que, em algumas votações específicas (como a da manutenção ou derrubada do veto do chefe de governo), a capacidade de barganha e de pressão do poder executivo influenciasse de maneira espúria o resultado das deliberações parlamentares.
Na história do Brasil, isso fica claro nas Constituições de 1946 e 1988.
Em ambos os casos, a vivência recente sob regime ditatorial conduziu os parlamentares constituintes rumo ao estabelecimento de várias situações em que o voto, no Congresso Nacional, seria secreto. O já não tão curto período de normalidade constitucional em que vivemos não deve fazer esquecer os riscos de retrocesso político a uma situação de exceção ou de intervenções espúrias do poder executivo sobre as decisões congressuais (mesmo sem ruptura institucional).
No entanto, não parece estar aí a questão central – hoje – para a discussão da eventual adoção do segredo do voto em algumas deliberações parlamentares.
O argumento de fundo, a favor do voto secreto, não muda: a possível influência deletéria da desigualdade de poder sobre a liberdade do voto. Mas essa desigualdade deve ser buscada mais na própria sociedade (e em sua relação com o Estado) que no confronto entre distintos órgãos estatais. Essa é uma questão relevantíssima, que tem a ver com a forma como a instância política se articula com as disparidades sociais.
No capitalismo, a instância política tende a ser o lugar em que se valoriza a igualdade entre os cidadãos, fato que se manifestou historicamente na máxima “um homem, um voto” e na luta popular, freqüentemente vitoriosa, pela extensão do sufrágio. No entanto, essa igualdade política assenta sobre extremas desigualdades de poder no plano social e econômico.
Por isso, grande parte da batalha pela democracia assenta no projeto de reforçar, estender e aprofundar o espaço de igualdade que se expressa – ainda que precariamente – no plano político eleitoral, enquanto grande parte do esforço por minar o potencial democrático do regime representativo assenta na estratégia de manter a instância política sob permanente suspeita, de maneira a evitar que dela (e da relativa igualdade política que do sufrágio universal deriva) possam vir ameaças para a desigualdade econômica e social subjacente.
Uma situação de disparidade extrema de riqueza e poder no plano social se manifesta politicamente pela capacidade dos grupos mais poderosos de manter sob ataque a esfera política, de impor e manipular, pelo menos por certo tempo, a agenda parlamentar e governamental e de impedir que, nas disputas congressuais, venham a primeiro plano as reais colisões de interesses e valores entre setores sociais, subordinando-as a temáticas em que uma suposta opinião pública homogênea se opõe à suposta falta de correção das práticas parlamentares. Em um mundo (e, particularmente, em um país) em que a concentração de poder e riqueza caminha junto com a concentração do controle sobre os meios de comunicação de massas, o tipo de manipulação que consiste em criar e impor a necessidade imperiosa (seja por motivo ético, financeiro ou outro) de determinada decisão, acaba por adquirir, sim, grande influência, freqüentemente deletéria, sobre as deliberações das agências estatais.
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Não é necessário supor, no entanto, que a solução para esse problema esteja no segredo do voto dos representantes no parlamento, como forma de garantir uma certa independência da esfera política em relação à influência das disparidades de poder e riqueza na sociedade.
Em primeiro lugar, porque, levada ao extremo, tal posição resultaria na transformação das deliberações do Estado em processos secretos, com riscos óbvios para qualquer processo de
democratização social. Mas também porque a organização política das camadas populares – que é o elemento decisivo para a efetiva democratização da sociedade – passa, em boa medida, pela conquista da transparência das decisões estatais – e, até, das decisões privadas que tenham dimensão suficiente para impactar os rumos da coletividade (fato que, aliás, é pouco explorado nas discussões sobre o segredo ou a publicidade nas decisões coletivas, talvez porque, ao se confinar as questões da igualdade e da liberdade à esfera estatal, se está justamente liberando a esfera privada para a desigualdade e a opressão).
O que se procura resguardar, nas considerações precedentes, como nas que concluirão este estudo, é o fato de que, na avaliação dos mecanismos institucionais que melhor garantam a prevalência do interesse público (e, particularmente, dos interesses das camadas populares), não há lugar para formalismos abstratos. Assim, concretamente, tanto pode ser mais efetiva, para esse desiderato, a determinação constitucional da publicidade de todos os votos dados pelos representantes como a do segredo de alguns desses votos, desde que adequadamente justificado. De qualquer maneira, é fora de dúvida que o funcionamento consistente do regime representativo – tal como é hoje concebido – exige a prioridade absoluta para a publicidade das deliberações estatais, não podendo haver recurso ao escrutínio secreto, em decisões parlamentares, senão excepcionalmente.
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