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sábado, 9 de abril de 2011

Família, sociedade civil e Estado

Autor: Robertônio Santos Pessoa


Em Hegel, certamente por influência de Rousseau, o conceito de autonomia do sujeito, de origem kantiana, deixa de se referir apenas ao sujeito, para assumir uma dimensão nitidamente coletiva, mais sintonizada com o conceito de eticidade. Para o próprio filósofo, tal movimento consistiu numa "reconciliação com o real", numa tentativa de superação dialética das contradições existentes no seio no movimento jusnaturalista. Hegel se dá conta de que, no mundo moderno, havia se consolidado figuras sociais que tornavam inviável a proposta de retorno ao modo de organização social da pólis greco-romana. Esta inviabilidade resultaria do fato de que a esfera da particularidade (da individualidade) havia assumido na modernidade uma dimensão inédita em comparação com o mundo antigo. Enquanto nesse último a expansão do particular conduzia ao colapso da ordem social, entrando em choque com o universal, o mundo moderno desenvolveria a universidade precisamente a partir do livre jogo da ação dos particulares, ou seja, da liberdade dos indivíduos.
Para uma fiel representação do "mundo moderno", em sintonia com sua postura dialética, Hegel elaborou o conceito de "eticidade" ou "vida ética" (Sittlichkeit). Tratava-se, agora, de inserir a "sociedade civil" como um momento próprio da totalidade social moderna, ainda que o Estado se apresentasse, no sistema hegeliano, como expressão máxima da universalidade em si e para si e da própria totalidade ética.
Buscando uma síntese dialética entre o particular e o universal, entre o indivíduo e o Estado, entre o privado e público, diferenciados e apartados na tradição jusnaturalista, para Hegel, entre esses dois momentos, caberia inserir a mediação da "sociedade civil". Com a descoberta dessa mediação, Hegel se capacita a cumprir a tarefa central que propusera para sua filosofia política : a conciliação entre, por um lado, a liberdade individual, surgida na modernidade e transformada no principal valor do liberalismo, e, por outro lado, a reconstrução de uma ordem social fundada na prioridade do público (do universal) sobre o privado.
Afastando-se do conceito de "vontade individual", ou "vontade de todos", de matriz liberal, Hegel adere ao conceito de "vontade geral", mais sintonizado com os princípios de seu sistema filosófico, conferindo a tal conceito uma base objetiva, e não mais subjetiva, como fazia o jusnaturalismo. Assim, para Hegel, a vontade geral, em seu processo de exteriorização, passa por um processo de determinações históricas que transcende a ação dos indivíduos e seus projetos volitivos singulares. Enquanto componente do mundo ético, a vontade geral não resulta de um postulado moral, mas emerge de uma comunidade objetiva de interesses que o movimento da realidade (que Hegel denomina "Espírito" ou "razão") produz e impõe aos indivíduos, independentemente da consciência e o desejo deles, embora muitas vezes se utilize desses "instrumentos" para sua concretização.
Neste contexto, a forma inicial da eticidade, a primeira forma objetiva universalizadora de interesses é a família, ou seja, a primeira esfera do ser social que define regras comunitárias de ação para seus membros. A terceira (e mais universal) forma da eticidade seria o Estado, definido como "totalidade ética". Entre a família e o Estado aparece, pois, como figura relativamente autônoma, a esfera da sociedade civil, denominada por Hegel como "sistema de necessidades e do trabalho". O conceito de sociedade civil aparenta uma certa inspiração econômica, talvez proveniente dos escritos clássicos da então nascente Economia. Em sua obra Filosofia do Direito, Hegel assim se manifesta sobre este conceito: "Nessa dependência e reciprocidade do trabalho e da satisfação das necessidades, o egoísmo subjetivo se transforma na contribuição para a satisfação dos interesses dos outros. Há uma mediação do indivíduo pelo universal, um movimento dialético pelo qual cada um, ao ganhar, produzir e fruir para si, precisamente por isso, produz e ganha para a fruição de todos. Essa necessidade se encontra no encadeamento universal da dependência de todos."
Em Hegel, com já acenado, o Estado aparece como superação dialética das duas primeiras figuras da eticidade (família e sociedade civil). O Estado, em sua ordem jurídica, eleva a um nível superior o movimento de universalização contido na família e na sociedade civil.
Em sua perspectiva, Hegel pretende entender o Estado como algo "racional em si", como "realidade da vontade substancial", como "momento supremo da vida coletiva", como "realidade da liberdade concreta".

Fonte: http://jus.uol.com.br/revista/texto/2883/poder-estado-direito-justica-e-liberdade-em-kant-e-hegel

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