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sábado, 30 de abril de 2011

A TRADIÇÃO CONSTITUCIONAL BRASILEIRA


Autor: Márcio Nuno Rabat

Como não poderia deixar de ser, a tradição constitucional brasileira consagra o princípio da publicidade das deliberações parlamentares, embora, desde o começo, com alguma ambiguidade. Dizia o art. 24 da Constituição do Império: “As sessões de cada uma das câmaras serão públicas, à exceção dos casos em que o bem do Estado exigir que sejam secretas”. Já a Constituição republicana de 1891 não tratava do assunto, o que proporcionou a Pontes de Miranda um inusual comentário impreciso: “No direito constitucional de 1891, a prática da publicidade era inconteste. Os regimentos previam discussão e votação secretas”. Ora, como seria inconteste a prática da publicidade se havia discussão e votação secretas?
Posteriormente, a definição constitucional das votações secretas no Congresso Nacional se foi tornando mais precisa. Ainda nas palavras de Pontes de Miranda: “Em 1934, fez-se secreto o voto nas eleições e nas deliberações sobre vetos e contas do Presidente da  República. A Constituição de 1946 apurou-lhe a técnica3. Escapou-lhe, disse-se, a espécie do art. 48 (perda do mandato)”. Para Pontes de Miranda, defensor da prevalência total da votação aberta, a falta de previsão do voto secreto para a decisão sobre a perda de mandatos de senadores ou deputados não constituía falha do texto: “No regime pluripartidário, em Constituição que mandou atender-se à representação dos partidos nas comissões e adotou outras medidas de responsabilização, é difícil explicar-se esse receio da votação aberta”.

A Constituição Federal de 1988 se aproxima do texto de 1946. A regra, como sempre, é a publicidade das sessões e dos votos. Mas exceções são explicitamente inseridas na Carta. São elas: aprovação da escolha de certos magistrados e titulares de cargos públicos (art. 52, III), da indicação de chefes de missão diplomática em caráter permanente (art. 52, IV) e da
exoneração do procurador geral da República (art. 52, XI)5; cassação do mandato de deputado ou senador (art. 55, § 2º); avaliação do veto do presidente da república a projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional (art. 66, § 4º). Possivelmente, a alteração mais significativa introduzida pela Constituição de 1988 – em relação à de 1946 – tenha sido a inclusão do segredo do voto nas decisões sobre perda de mandato de deputados e senadores.

De realçar, na tradição constitucional brasileira sobre a matéria, é a extensão que as constituições mais liberais e democráticas (como as de 1946 e 1988) dão ao segredo do voto, em confronto com sua restrição pelas cartas autoritárias. Assim, as constituições de 1937 e de 1967 (principalmente após a extensíssima “emenda” de 1969) foram exatamente
aquelas que mais ampliaram o uso do voto a descoberto no Congresso Nacional. A preocupação era, então, garantir que o governo (ditatorial) pudesse impor suas posições a um parlamento acuado. Daí a importância de se impedir, por exemplo, que os vetos do presidente da República a projetos de lei fossem analisados em escrutínio secreto. A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, chega ao requinte de explicitar a prevalência do voto aberto nesse caso (“art. 59, § 3º Comunicado o veto ao Presidente do Senado Federal, este convocará as duas Câmaras para, em sessão conjunta, dele conhecerem, considerando-se aprovado o projeto que, dentro de quarenta e cinco dias, em votação pública, obtiver o voto de dois terços dos membros de cada uma das Casas...”).

Constituição de 1946, art. 43: “O voto será secreto nas eleições e nos casos estabelecidos nos arts. 45, § 2º, 63, nº I, 66, nº VIII, 70, § 3º, 211 e 213”. As remissões referem-se aos seguintes casos: licença para o processo criminal do deputado ou senador (art. 45, § 2º); aprovação da escolha de magistrados (art. 63, I); julgamento das contas do presidente da República (66, VIII); julgamento do veto (70, § 3º); exame da decretação do estado de sítio (211); suspensão das imunidades de deputados e senadores (213).

Todas as citações retiradas de: Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, ps. 401 a 404 [Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1960].

Os três casos estabelecidos no art. 52 referem-se a deliberações exclusivamente do Senado Federal. No texto original, havia ainda previsão de voto secreto para resolver sobre a prisão em flagrante e a formação da culpa no caso de crime inafiançável praticado por membro do Congresso Nacional (antigo art. 53, § 3º); no entanto, a emenda Constitucional nº 35, de 2003, alterou a situação.
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Embora a importância do confronto entre poderes estatais não deva ser subestimada na discussão sobre o caráter secreto ou público do voto no Congresso nacional, o debate, hoje, deve transcender esse fenômeno restrito. Na verdade, há razões para suspeitar que o enquadramento do problema nessa camisa de forças oculta o fundo da questão, que é a influência das disparidades sociais de poder sobre o funcionamento consistente do regime representativo.

Assim, mesmo as defesas do voto secreto que surgem na grande imprensa tendem a se concentrar no tema da relação entre poderes e procuram ridicularizar as tentativas de trazer, por exemplo, o papel da mídia para o centro do debate.

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